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Pedro Luso de Carvalho
CAIO FERNANDO ABREU nasceu
na pequena Santiago, cidade do interior do Rio Grande do Sul, a 12 de setembro de
1948, e morreu em Porto Alegre no dia 25 de fevereiro de 1996, acometido pelo
vírus da Aids.
Ainda era muito jovem,
quando se mudou para Porto Alegre. Ingressou nas faculdades de Letras e Arte
Dramática, mas não chegou a concluir nenhum desses dois cursos. Mudou-se para o
centro do país para dedicar-se ao jornalismo. No período que compreende os anos
de 1973 a 1994 trabalhou na Europa e também no Brasil para diversos veículos de
comunicação Foi nesse período que editou grande parte de seus romances,
novelas, contos e crônicas.
Segue a crônica A morte dos Girassóis, de Caio Fernando
Abreu, conto esse que integra a coletânea Histórias
de Grandeza e de Miséria, Porto Alegre: L&PM, 2003, p. 51-52:
A
MORTE DOS GIRASSÓIS
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CAIO FERNANDO ABREU
Anoitecia, eu estava no
jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o
anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além
de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira
subindo lenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu
disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que foi, ele enfim suspirou: “Me
disseram no Bonfim que você morreu na quinta-feira”. Eu disse ou pensei dizer
ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri
sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me
libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela
rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar lá no Bonfim diz que sim,
que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e
avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo astral”.
Acho que ele foi embora,
ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando de assunto sem
mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por
exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco
brutas.
Pois não são. Girassol
leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas
vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá
está o botãozinho todo catita, parece que vai abrir.
Mas leva tempo, ele
também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no
verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários
girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o
senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me
olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui
cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol
quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria
flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo
engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas
coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com
cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção,
parecia não valer a pena. Só apoie-o numa espada de São-Jorge com jeito, e
entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de
novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário,
feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio chuva medonha e
deitou-o por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e
coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente
Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio de ângulos das fraturas, a flor
ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.
Na manhã seguinte, juro,
ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola
toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois
pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo torto, o outro com as mãos
quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e
joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da
sacada. Para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus
misturado à terra. Depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de
uma rosa, palma-de-Santa Rita, lírio ou azaleia, vai saber que tramas armam as
raízes lá embaixo no escuro, em segredo.
Ah, pede-se não enviar flores.
Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta
coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do
tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho
que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
Zero Hora, 18 de março de 1995
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