– PEDRO LUSO DE CARVALHO
O escritor francês Prosper Mérimée mostra a sua maestria na arte do
conto, ao escrever uma das mais importantes obras de ficção nesse gênero da
literatura: Mateus Falcone. A seguir procurarei fazer um resumo dessa obra
clássica de Mérimée, que integra, além de Novelas Completas, uma antologia
universal dos melhores contos de todos os tempos, que foi organizado pelo
erudito escritor italiano Italo Galvino.
A história de Mérimée começa a ser contada com a descrição do local onde
se desenrolará o drama de Mateus Falcone, um mato bastante extenso, que se
constitui na pátria dos pastores corsos e de pessoas que estão envolvidas com a
justiça. Conta, que para se chegar nesse local, saindo de Porto Vecchio para o
interior da ilha, rumo ao nordeste, depara-se com elevação do terreno, e que
daí levará três horas de caminhada por caminhos tortuosos, obstruídos de pedras
enormes ou escavados em grotões. Aí, o lavrador corso semeia a terra para
aguardar uma nova colheita, ateando fogo em uma extensão da mata, que se
propaga além do necessário; método que usa para livrar-se do trabalho de adubar
a terra. Narra ainda, que compõem o mato árvores de diversas espécies e
arbustos, misturados e confundidos ao deus-dará, e que só machado poderia abrir
passagem, com matos tão espessos, que nem os carneiros selvagens conseguem
penetrá-los.
Nesse local, o mato de Porto Vecchio, quem havia matado um homem vivia
com segurança, com um bom fuzil, pólvora, balas e uma capa escura de capuz para
ser usada com coberta e colchão. Os pastores fornecem leite, queijo e castanhas,
e não terão que temer a justiça ou os parentes do morto, a não ser quando
descesse à cidade para a compra de munições. Há meia légua dali morava Mateus
Falcone. Nesta altura, Mérimée traça o perfil do personagem: “Era um homem
bastante rico para a região; vivia nobremente, isto é, sem nada fazer, do
produto de seus rebanhos, que campônios um tanto nômades levavam a pastar na
montanha. Quando o vi, logo após o caso que vou contar, diz Mérimée, pareceu-me
que tinha quando muito uns cinqüenta anos. Imaginai um homem baixo, mas
robusto, de cabelos crespos, negros como ébano, nariz aquilino, lábios
delgados, olhos grandes e vivos, e uma pele cor de couro cru”.
Prossegue a narrativa: pelos seus méritos, Mateus Falcone gozava de
grande reputação. ‘Diziam-no tão bom amigo quão perigoso inimigo: que era,
aliás, serviçal, dado a fazer esmolas, e vivia em paz com todos no distrito de
Porto Vecchio. Mas dele se contava que em Corte, onde casara, soubera
desembaraçar-se energicamente de um rival considerado tão temível na guerra
como no amor: pelo menos se atribuía a Mateus certo tiro de espingarda que
abatera o dito rival, quando se achava este a se barbear diante de um
espelhinho pendurado à janela. Abafado o caso, Mateus casou-se. Sua mulher
Josefa dera-lhe a princípio três filhas, o que o deixava furioso, e finalmente
um filho, a quem chamou Fortunato: era a esperança da família, o herdeiro do
nome. As filhas haviam casado bem: seu pai podia contar, em caso de
necessidade, com os punhais e as escopetas dos genros. O filho tinha apenas dez
anos, mas já anunciava excelentes pendores”.
A história de Mérimée prossegue com a chegada de um estranho à casa de
Mateus Falcone, quando este sai com a mulher para ver um de seus rebanhos numa
clareira do mato, deixando o filho, o pequeno Fortunato, por ser muito longe a
clareira e também para que ficasse cuidando da casa. Depois de algumas horas da
ausência dos pais, Fortunato ouviu tiros que se sucederam, e, depois, surgiu um
homem de barba crescida, as vestes em farrapos, apoiando-se na espingarda, que
havia recebido um tiro na coxa pelos atiradores corsos; era um bandido que
havia saído à noite para comprar pólvora na cidade e sofrera uma emboscada.
Aproximou-se de Fortunato e perguntou se era filho de Mateus Falcone; com a
resposta afirmativa, o bandido disse chamar-se Gianetto Sanpiero, e pediu ao
menino que lhe ocultasse de seus perseguidores.
O diálogo entre o menino Fortunato e o bandido Gianetto Sanpiero
prolongou-se até que este o ameaçou de morte, caso não lhe ajudasse a esconder-se;
Fortunato disse a Gianetto que sua espingarda não tinha munição, e, quando foi
ameaçado com uma faca o menino disse nada temer por ser mais rápido que ele. O
bandido argumentou, que sendo ele filho de Mateus Falcone não poderia deixar
que fosse preso na frente de sua casa, argumento que sensibilizou Fortunato.
Este perguntou ao bandido quanto ganharia se o escondesse, e Gianetto
entregou-lhe uma moeda de cinco francos, que tirou de uma bolsa de couro. O
acordo estava fechado. O menino escondeu o bandido num monte de feno em frente
da casa, recobrindo-o de maneira a não lhe faltar ar.
Passados alguns minutos, apareceram seis homens na porta Mateus,
trajando uniforme, comandados pelo adjunto Teodoro Gamba, de quem os bandidos
temiam por já ter apanhado muitos deles. Chamando Fortunato de priminho, por
ser aparentado com Mateus Falcone, perguntou se ele havia visto passar um homem
por aqui, há pouco. O menino respondeu que viu passar o Cura no seu cavalo
Piero. Pela conversa que tiveram, Teodoro Gamba percebeu que o menino havia
visto o bandido, e perguntou-lhe se não o havia escondido, afirmando que as
manchas de sangue param aqui. A ordem de Gamba foi para entrarem na casa para
procurar o bandido. O menino Fortunato o ameaçou, com risinho zombeteiro,
dizendo-lhe ser filho de Mateus Falcone, e que seu pai não iria gostar de saber
que entraram em sua casa.
Então o ajudante Gamba disse ao menino: “Bem sabes malandrin que posso
levar-te para a Corte ou para Bastia. Farei dormires num calabouço, em cima da
palha, com ferros nos pés, e mandarei guilhotinar-te se não disseres onde está
Gianetto Sampiero”. O menino soltou uma gargalhada e disse ser filho de Mateus
Falcone. Gamba com isso pareceu embaraçado, e “conversava com voz baixa com
seus homens que já tinham atravessado toda a casa. Não era uma diligência muito
longa, pois a casa de um corso consiste apenas em uma única peça quadrada. A
mobília compõe-se de uma mesa, banco, arcas e utensílios domésticos ou de caça.
Enquanto isso o pequeno Fortunato acariciava a sua gata, e parecia saborear
malignamente a confusão do primo e dos atiradores”.
Diante dessa situação, o adjunto e seus homens já olhavam seriamente
para as bandas da planície, dispostos a voltar por onde tinham vindo, quando o
chefe resolveu envidar um último esforço, tentando o poder das carícias e dos
presentes para convencer o filho de Mateus Falcone a mostrar onde estava
escondido o bandido, dizendo-lhe, que, se não temesse causar incômodos ao primo
Mateus o levaria preso, sem que tal ameaça tivesse causado o mínimo efeito.
Então disse ao menino que contaria tudo a seu pai, e que ele quando soubesse de
sua atitude haveria de surrar-lhe até sair sangue, ao que o menino disse-lhe:
“É o que veremos”.
Como último recurso o adjunto Gamba ofereceu ao menino um relógio de
prata que valia mais de dez escudos: “e, ao ver que os olhos do pequeno
Fortunato rebrilhavam ao vê-lo, disse-lhe, segurando o relógio suspenso à
extremidade da corrente de aço: - Malandro! Bem que desejarias ter um relógio
como este, preso à tua gola. E sairias a passear pelas ruas de Porto Vecchio,
orgulhoso como um pavão. E as pessoas te perguntariam: “Que horas são?” e tu
dirias: “Vejam no meu relógio”. Depois o adjunto perguntou ao menino: “Então,
não queres este relógio, priminho? Fortunato fitando o relógio com o rabo do
olho, assemelhava-se a um gato a quem oferecem um frango inteirinho”.
Mérimée, nesse importante ponto da história demonstra conhecer bem os
sentimentos relativos à fraqueza de caráter do homem, como a ambição, a astúcia
e a traição. Voltando ao ponto em que o menino Fortunato está por sucumbir à
tentação do adjunto Gamba, que fazia o relógio oscilar no ar, às vezes quase
lhe batendo no nariz: “Afinal, pouco a pouco, a sua mão direita ergueu-se para
o relógio: as extremidades de seus dedos tocaram-no; e o relógio pesava inteiro
em sua mão, sem que, no entanto o adjunto largasse a corrente... o quadrante
era azulado... a caixa fora recentemente brunida... e ali, ao sol, parecia toda
de fogo... A tentação era demasiado forte”.
O passo seguinte, na história, a traição do menino, após ter apanhado o
relógio do adjunto Gamba, que lhe indicou o lugar onde se encontrava o bandido:
“Fortunato ergueu também a mão esquerda, e indicou com o polegar, por cima do
ombro, o monte de feno a que se recostara. O adjunto compreendeu. Soltou a
extremidade da corrente; Fortunato sentiu-se possuidor único do relógio.
Endireitou-se com agilidade de uma gamo, e afastou-se dez passos para longe do
feno, que os atiradores começaram logo a revirar”. O bandido preso olhou para o
menino que lhe traiu, dizendo um palavrão. O menino atirou-lhe a moeda que
recebera para escondê-lo, por sentir que não a merecia.
Mérimée conta os fatos ocorridos após a prisão, e as providências
tomadas pelo adjunto Gamba para levá-lo para Porto Vecchio. E que, “Mateus e a
mulher apareceram de súbito na volta de um caminho que conduzia a um mato. A
mulher avançava penosamente, curvada ao peso de enorme saco de castanhas, ao
passo que o marido ia à vontade, carregando apenas uma espingarda na mão e
outra a tiracolo; pois é indigno um homem carregar outro fardo a não ser suas
armas”. Ao vê-los, Mateus pensou que vieram prendê-lo, embora não tivesse
qualquer problema com a justiça. Estava com a consciência limpa. De qualquer
forma, preparou-se para defender-se, dizendo para a mulher largar o saco e se
aprontar, dando-lhe a espingarda que trazia a tiracolo.
O adjunto ao ver esses movimentos de Mateus temeu ser ele parente do
bandido, vendo-o “avançar daquele jeito, a passos medidos, com arma apontada e
o dedo no gatilho”. À vista disso, o adjunto tomou a iniciativa de se separar
de seus homens e de adiantar-se para explicar a Mateus Falcone o que se
passava: “Sou eu, Gamba, o teu primo”. E contou-lhe que passara por sua casa e fizera
uma bela captura: “Acabamos de apanhar Gianetto Sanpiero”. Ouvindo esse relato
Josefa sentiu-se aliviada, e disse que “a semana passada, ele nos havia roubado
uma cabra leiteira”; esse relato agradou Gamba, mas não a Mateus, que disse:
“Pobre diabo! Ele tinha fome”.
O adjunto Gamba contou-lhe tudo que Gianetto fizera: “matou um dos
atiradores e, não contente com isso, inutilizou o braço do Cabo Chardon; mas
isso não tem grande importância, não passava de um francês...E depois,
ocultou-se tão bem, que nem o próprio diabo poderia descobri-lo. Se não fosse o
priminho Fortunato, eu nunca o teria encontrado”. Ao ouvir isso, Mateus
exclamou o nome do filho: - Fortunato! E Josefa repetiu a exclamação: -
Fortunato! Gamba confirmou e contou como tudo aconteceu, dizendo-lhe que ia
contar ao seu tio caporal para que lhe mandasse um presente pelo trabalho,
aduzindo: “O nome dele e o teu figurarão no relatório que enviarei ao
Procurador Geral”. - Maldição! - disse baixinho Mateus.
A história de Mérimée, já está se encaminhado para o desfecho: “Tinham
alcançado o destacamento. Gianetto já estava deitado na liteira e pronto para
partir. Quando viu Mateus na companhia de Gamba, esboçou um sorriso estranho;
depois, voltando-se para a porta da casa, cuspiu-lhe à entrada, dizendo: ‘Casa
de traidor!’. Só um homem decidido a morrer teria ousado pronunciar a palavra
traidor aplicando-a a Falcone. Uma boa punhalada, sem necessidade de repetição,
teria imediatamente pago o insulto. Mateus, no entanto, não fez outro gesto que
o de levar a mão à fronte, como um homem acabrunhado”.
Fortunato ao ver que seu pai estava de volta entrou na casa e voltou com
uma jarra de leite, e com olhos baixos oferecendo-a a Gianette, que gritou: -
“Longe de mim!” Depois, é narrado os últimos momentos em que o adjunto se
retira desse local, com o prisioneiro e seus homens. “Transcorreram cerca de
dez minutos, antes que Mateus abrisse a boca. O menino olhava inquietamente ora
para a mãe ora para o pai, que, apoiado à arma, o considerava com uma expressão
de cólera concentrada. – Começas bem! – disse afinal Mateus com voz calma, mas
terrível para quem conhecia o homem. – Meu pai! – exclamou o menino, avançando
com os olhos cheios de lágrimas, como para lançar-se-lhe aos joelhos. –
Afasta-te!” Disse Falcone ao filho.
Pode-se prever facilmente que Mérimée está na parte mais dramática da
história, no seu clímax ou no patético, como se diz em oratória. Nesse momento
da história, sente-se qual será o seu desfecho, à vista do caráter de Mateus;
do desfecho, participam Mateus Falcone, o filho Fortunato, que, desesperado
pede ao pai que não lhe mate, e a mãe Josefa, que tudo pressente, e que se vê
impotente para evitar a tragédia. Josefa ao ver a corrente do relógio saindo de
dentro da camisa do filho, pergunta-lhe quem lhe dera o relógio, e ele
respondeu que foi o primo Gamba. Então, Mateus perguntou a Josefa: “- Mulher,
esse menino é meu filho?” Josefa respondeu-lhe: “ - Que dizes Mateus, não sabes
com quem estás falando? – Pois olha, esse menino é o primeiro de sua raça que
comete uma traição”.
Agora, chamamos a atenção para o brilhante desfecho da história de
Mateus Falcone, digna da importância de Prosper Mérimée para o mundo literário,
numa narrativa direta e chocante. Essa obra, entre outras de Mérimée, justificam
plenamente constar ele, entre outros, no primeiro patamar da literatura
universal.
“Redobraram os soluços de Fortunato, e Falcone mantinha sempre os seus
olhos de lince fixos no menino. Bateu enfim com o coice da arma no solo, lançou-a
ao ombro e tomou o caminho do mato, gritando ao filho que o seguisse. Fortunato
obedeceu. Josefa correu para Mateus e pegou-lhe do braço. – É o teu filho -
disse ela com voz trêmula, fitando os olhos negros nos do marido, como para ler
o que se passava em sua alma. Deixe-me, - retrucou Mateus: - eu sou o pai dele.
Josefa beijou o filho e voltou chorando para a cabana. Lançou-se de joelhos
ante uma imagem da Virgem e pôs-se a rezar fervorosamente. Entrementes,
Falcone, avançando uns duzentos passos no caminho, parou enfim junto a um
barranco, por onde desceu. Sondou a terra com o coice da arma: achou-a branda e
fácil de cavar. O local pareceu-lhe conveniente para o seu desígnio”.
Mateus Falcone ordenou ao filho: “ - Fortunato, vai para o fundo daquela
pedra grande. O menino fez o que lhe ordenavam, depois se ajoelhou. – Reza as
tuas orações. – Meu pai, meu pai, não me mate. – Reza! – repetiu Mateus com voz
terrível. O menino balbuciando e soluçando, rezou o Padre-Nosso e o Credo. O
pai, com voz forte, respondia Amém! no fim de cada prece. – São essas orações
que tu sabes? – Eu sei também a Ave-Maria, meu pai, e a ladainha que minha tia
me ensinou. – É muito longa, mas não importa. O menino terminou a litania com
uma voz apagada. – Terminaste? – Oh! Meu pai, por amor de Deus, perdoe-me! Eu
não farei mais! Pedirei tanto ao meu primo caporal, que hão de perdoar ao
Gianetto! Continuava a falar, enquanto Mateus armava a espingarda e apontava-a,
dizendo-lhe: - Que Deus te perdoe! O menino fez um desesperado esforço para se
erguer e abraçar-se aos joelhos do pai; mas não teve tempo. Mateus fez fogo, e
Fortunato caiu morto. Sem olhar para o cadáver, Mateus retomou o caminho de
casa, em busca de uma enxada para enterrar o filho. Mal dera alguns passos,
encontrou Josefa, que acorria alarmada com o tiro. – Que fizeste? – Justiça. –
Onde está ele? – Lá embaixo, no barranco. Vou enterrá-lo. Morreu como cristão,
mandarei rezar uma missa por ele. Dize a meu genro Teodoro Bianchi que venha
morar conosco”.
REFERÊNCIA:
MÉRIMÉE, Prosper. Novelas Completas. Trad.
Mário Quintana. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1960.
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Pedro