4 de jan. de 2011

[Conto] CYRO MARTINS – Derrotado

Cyro Martins

                         por Pedro Luso de Carvalho

                                      
      Importantes homens e mulheres da letras brasileira vêm analisando a obra do escritor gaúcho Cyro Martins - médico-psicanalista por formação-, que se sobressaiu no conto, no romance e no ensaio. Um destes críticos, foi Carlos Jorge Appel, que fez a apresentação do seu livro de ensaios, qual seja,  Escritores Gaúchos, que foi publicado pela editora Movimento, em 1981; diz Appel: “Cyro Martins, lançando-se em 1934, teve não só a força de revisar, reestruturar todos os seus romances e livros de contos, como ainda conseguiu, 'no rabo das horas', como costuma dizer, analisar a obra de muitos contemporâneos seus”.

        Carlos Jorge Appel menciona os muitos nomes desses escritores da geração de 30: Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Nogueira Leiria, Lilla Ripoll, Mário Quintana e Raul Bopp. E conclui Appe1: “Mais que uma devoção que nutre por todos eles, como reconhece o próprio Cyro Martins, mais que um depoimento ou reminiscências criativas, deve-se reconhecer em Escritores Gaúchos o que propõe a epígrafe de Augusto Meyer: Cada palavra impressa esconde um espelho de mil facetas, onde a nossa imagem pode multiplicar-se até a tortura dos indefiníveis".

        O livro de contos Campo Fora foi a estréia de Cyro Martins, em 1934.Sobre essa obra, escreveu o também escritor e crítico literário Guilhermino Cesar: Campo Fora troxe ao gênero uma perspectiva social que todos os seus críticos têm valorizado; e sob este ângulo é que, no futuro, será ainda lembrado, quando todas as “modas” de hoje estiverem esquecidas. Mas, a meu ver, há nele um traço que o singulariza entre seus companheiros, tão importante, afinal, como sua temática: o modo de narrar”. 

        Cyro dos Santos Martins nasceu em 5 de agosto de 1908, em Quaraí, RS, e faleceu a 15 de dezembro de 1995, em Porto Alegre.

        Segue o conto Derrotado, de Cyro Martins, que integra o seu livro de contos Campo Fora, sua obra de estréia, publicado em Porto alegre pela editora Movimento, em 1991, p. 32-33: 



                                                              DERROTADO
                                                                          
                                                                                  – CYRO MARTINS



        Isidoro Palma vinha derrotado.

        Esfalfados, ele e o cavalo, a expressão de caiporice estampada no semblante, e um ar triste de derrota nos gestos.

        Descia o Caverá. Ao tranco, que o montado não dava para mais.

        Na estrada não havia rasto de ninguém. Os aramados em extensões enormes deitados no chão, o pasto quebradiço e branco, e as lavouras sem viço, minguadas, davam uma desolada impressão de abandono.

        Meia tarde. Sol de dezembro castigando a terra. A cintilação áspera das distâncias cegava. E na encosta dos cerros, e no fundo das baixadas, o abrigo da sombra das restingas. Mais adiante, à beira-estrada, quietas e sós, raras árvores franqueando-se buenas ao andante estafado para uma sesteada de alívio.

        Havia um ano atrás, bem justo, passara ali mesmo.

        Mas que brutal mudança! Daquela vez, que alegria solta! Nos companheiros, nos campos, nos cerros, nas árvores, nos animais! E ele, fanfarrão, alteando a estampa moça, era decerto o mais feliz na gaiatice geral. Tinha motivos demais para tamanha alegria.

        Trazia aquilo bem vivo na memória. A troca cruzara ali de manhã. Os pingos recém-potreados, alarifes e graxudos, resvalavam os cascos brutos naquela fartura de capim ainda molhado da serenada grande. E os índios levavam dentro do peito ímpetos xucros de carga. E o capitão Isidoro Palma, à frente do seu grupo guapo, mais resolvido do que nunca pra que viesse, perna estaqueada no pingo arpista, era a esperança da coluna.

        E agora? Tudo mudado!

        Era funda a mágoa do gaúcho caipora, vendo a mesma paisagem gloriosa de outro tempo estirar-se hostil aos seus olhos cansados.
  
        Quando o sol entrou, já vinha longe do Caverá.

        Atravessava agora a várzea do Cantagalo. Sempre ao tranco, como se não levasse pressa. Alheio à instinção da paisagem. As vistas varando a meia luz do horizonte quase morto, rumo a um rancho no garupá. Lá, enlaçando o busto na procura do que vinha nas distâncias, uma chinita esperava impaciente o dono do seu coração. Aquela noite, devagar mesmo, havia de chegar.

        O cavalo parou. O índio o convidou de leve com a espora. Nada. O montado não dava mais.

      Isidoro Palma apeou, fronte franzida num pressentimento. E sem queixa,sem maldições, com muita cautela, com muito mimo, com muita pena desencilhou o pobre pingo, para não judiar do flete companheiraço.

        O gaúcho, estirado nos arreios, integrou-se na paz daquele chão.

        Longe, num estirão de léguas, subindo de trás do Jarau uma montoeira de nuvens afogueadas. E no céu alto e aberto, na rasura dos planos e nas árvores perdidas, o jeito pesado das coisas imóveis.

        Quando acordou no outro dia, vinha apontando o sol. De pé, varreu a várzea num golpe de vista. A meia légua, um piquete guerreiro.
     
        A perseguição aos derrotados continuava.

        Endereçou-se ao cavalo, ainda espichado na grama miúda. Chegou cauteloso. Amimou-lhe a anca, o lombo, as crinas. Levou o buçal com cuidado. E a custo se convenceu que lhe morrera o pingo.

        Recalcando a crua mágoa, ficou tempo parado diante do flete companheiro de muitas noitadas de amor, de incontáveis carreiras de peleia e tava, de muita corrida braba de boi, e de brutais arriscadas na guerra.

        O piquete inimigo vinha perto.

        Reluziam ao sol os dentes rilhados do animal. E os olhos vidrados pareciam fixar o perfil acabrunhado do guerreiro.

        Os perseguidores galopearam. O tropel se espraiou longínquo alarmado no descampado. Um grito e mais outro e um berreiro estalou. Luziram espadas contra o sol nascente. Lenços e palas revoaram sacudidos pelo vento.

        Isidoro Palma tinha ainda a sua adaga fiel.

        Caiu hirto, em golpe duro, como um pau sobre o cavalo morto.


  

7 comentários:

  1. Pedro,

    Mais um escritor que eu não conhecia. Vou comprar esse livro de contos.

    Me fez lembrar Graciliano Ramos, que para mim é o maior escritor brasileiro dos já mortos.

    Obrigado!

    abço
    Cesar

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  2. Bela história que se lê de um trago só, confundido o cansaço e a dor do animal e seu dono.

    Desejo-lhe a si e aos seus um bom ano de 2011.

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  3. Olá !! Bom Dia!

    Não conhecia este conto do Cyro Martins!!Gostei!Um cenário bem triste, rústico, bem fronteira...
    Passar por aqui, sempre aprendo alguma coisa!!
    Obrigada!!
    Um abraço!
    Boa semana1

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  4. Pedro!
    Olá!
    Boa noite pra você!!!
    "Todos os dias devíamos ouvir um pouco de música, ler uma boa poesia, ver um quadro bonito e, se possível, dizer algumas palavras sensatas."
    (Goethe)
    Eu acrescento: todos os dias deveríamos visitar um blog de qualidade como esse!
    Beijocas, muitas!
    Sônia Silvino's Blogs
    Vários temas & um só coração!
    *Blogueira entrevistada no blog Patchwork nesta semana: Maysha!
    Confira!

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  5. Que ótimo, Pedro! Eu também não conhecia. Vou seguir o mesmo que o colega Cesar Cruz...

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  6. Olá Pedro
    Não conhecia o escritor nem a obra.
    Gostei deste conto, do seu enredo e descrição exaustiva que o autor faz da paisagem que o rodeia, conseguindo que o leitor se aproprie de todo espaço, tornando a leitura mais intensa.
    Bom começo de ano aqui no blog!
    Beijo
    Graça

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  7. Pedro, acho importantes as suas postagens. Servem para despertar o interesse dos leitores e ajudá-los a ampliar seu conhecimento. Muita gente precisa de um empurrão para ler; você dá esse empurrão.

    Feliz 2011!

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Obrigado a todos os amigos leitores.
Pedro