– PEDRO
LUSO DE CARVALHO
DALTON TREVISAN iniciou-se no conto, esse
difícil gênero da literatura, nos anos 60. Já de início deu mostra de que não
estava para brincadeiras, e logo foi reconhecido como “o contista”. A partir
dessa época outros brasileiros passariam a ganhar nome na narrativa curta: Rubem Fonseca, Clarice
Lispector e Lygia Fagundes Telles.
O sucesso do conto, a partir dos anos 60, deveu-se tanto pela qualidade
dos contistas como pela formatação do conto, cuja narrativa dava-se num número
de 20 a 25 páginas.
Segue a transcrição de Meu avô,
conto de Dalton Trevisan (in Trevisan, Dalton. Novelas nada exemplares. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965, p. 139-140):
MEU AVÔ
– DALTON
TREVISAN
VOVÓ MORREU sentada ao lado do fogão,
cerzindo meias no ovo de madeira. O velho dava-lhe as costas, um de mau com o
outro. O ovo de madeira lhe rolou aos pés... Voltou-se para ela, bem quieta na
cadeirinha de palha. Cerzira a meia e, ao levar o fio à boca para cortá-lo
(tinha todos os dentes aos sessenta anos), morreu.
O velho trancou-se no quarto, a berrar que
havia gente interessada na sua morte. Batia na parece com o martelo e, uma
noite, a cada pancada seguiu-se um grito. Os filhos arrombaram a porta e
tomaram-lhe o martelo das mãos: começara a enterrar um prego na cabeça.
Vovô comia com a colher. Meu pai
cortava-lhe a carne no prato e, ao deitar-se, escondia dele facas e garfos. O
velho levava para o quarto a sua garrafa de vinho, que os filhos enchiam toda
noite, misturando-o com água.
Tinha muito de medo de açúcar na arina. Antes
de enfiar-se na cama, de cachimbo e ceroulas, media com cuidado os pulsos e
tornozelos, aparava dois pedaços de barbante exatamente naquelas dimensões para
verificar, na manhã seguinte, se o corpo havia inchado. Dormia bêbado,
esquecido da porta aberta... e os netos entrávamos no quarto, reduzíamos o
tamanho dos barbantes e espargíamos açúcar pelo urinol, que amanhecia rodeado
de formiguinhas ruivas.
Com saudade da falecida, jurou privar-se de
manteiga o resto da vida. E manteiga era do que mais gostava, depois de beber.
Vovó não se deu por satisfeita; ele escutava os ruídos da defunta. Que vinha
deitar-se, arrastando o vaso debaixo da cama. A garrafa corria no soalho,
gorgolejava um resto de vinho azedo. Os brados do meu avô ecoavam pela casa:
– Vá-se embora daqui... Você já morreu,
mulher diaba!
Ouvia então as moscas ao redor da cama – era
a falecida.
Bem que ele se queixara: “Essa bicha está
com cheiro!” E havia queimando folhas de alecrim no quarto.
O velho achou a navalha de meu pai (iria
dar pela falta apenas no sábado, quando fizesse a barba) e, antes que a defunta
se deitasse na cama, cortou o pescoço de uma orelha a outra. Atirou a navalha
pela janela e, sustentando com as mãos a cabeça, seguiu pelo corredor até a
cozinha, deitou-se aos pés da cadeirinha de palha – o sangue verteu do assoalho
feito água de chuva debaixo da porta.
Mamãe encontrou-o, de manhã, quando foi acender
o fogo. Meu pai suspendeu o velho, encostou-o na parede: “Pai, pai, sou eu.
Pai, me responda. É o Paulo”. Tinha de firmar a cabeça no pescoço a fim de que
ela não rolasse.
De volta do enterro, meu pai sentou-se na
cadeirinha de palha, a cabeça nas mãos. Foi ao quarto do vovô, achou sob a cama
a garrafa já pela metade. Bebeu o vinho azedo, esfregou os dedos no sangue e
chamou pelo velho. Conversava com ele no quarto, bem como pai e filho. Mamãe
batia na porta:
– Venha jantar, Paulo. São nove horas.
À noite, ele pregou as portas e janelas. E
foi dormir bêbado, a mão suja de sangue.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado a todos os amigos leitores.
Pedro