– PEDRO LUSO DE CARVALHO
MONTEIRO LOBATO (José
Bento Monteiro Lobato) nasceu a 18 de abril de 1882, em Taubaté, São Paulo, e
morreu a 4 de julho de 1948, na capital paulista, aos 66 anos. Álvaro Lins e Aurélio
Buarque de Hollanda disseram que
Monteiro Lobato tem a glória de haver criado um tipo nacional – o Jeca Tatu, e que ele apareceu
nas letras por acaso, em 1914, quando enviou ao Estado de São Paulo, para a
seção “Queixas e Reclamações” uma carta, “Velha Praga” contra a queima de matas
de fazendas circunjacentes. Tornou-se articulista do jornal.
Monteiro Lobato formou-se
em Direito, foi promotor público e fazendeiro. Vendeu a propriedade, e se
transferiu para São Paulo. onde adquiriu e dirigiu a Revista do Brasil. É considerado o verdadeiro fundador da indústria
do livro em nosso país. “A figura de Monteiro Lobato – escreve Gilberto Freire
– há de guardá-la não apenas a história literária do Brasil, mas a própria
história do povo e da nacionalidade brasileira; aquela história que às vezes é
escrita com sangue. Ele foi um dos iniciadores mais vigorosos da fase atual da
literatura em nosso país”.
OBRAS: Urupês, 1918; Cidades mortas, 1921; A onda verde, 1921; Mundo da lua, 1923; O ferro,
1931; Na antevéspera, 1933; Contos pesados, Contos leves, América, Narizinho arrebitado, As caçadas de Pedrinho, Emília no País da Gramática, Aritmética de Emília, Histórias do mundo para as crianças, Urupês, Outros Contos e Coisas, A barca de Gleyre; etc.
O conto de Monteiro Lobato,
intitulado Meu conto de Maupassant, que integra o livro Contos pesados, da Coleção Grandes Livros Brasileiros, v. II, publicado
pela Companhia Editora Nacional, São Paulo, 193?, p. 237-240, é transcrito na
íntegra, como segue:
MEU CONTO DE MAUPASSANT
– MONTEIRO LOBATO
Conversavam no trem dois
sujeitos. Aproximei-me e ouvi:
– Anda a vida cheia de
contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimos Guys...
– Por que Maupassant e
não Kipling, por exemplo?
– Porque a vida é amor e
morte e a arte de Maupassant é simplesmente um enquadramento engenhoso do amor
e da morte. Mudam-se os cenários, variam os atores, mas a substância persiste –
o amor sob a única face impressionante, a que culmina numa posse violenta de
fauno incendido de luxúria, e a morte, o estertor da vida em transe, o quinto
ato, o epílogo fisiológico. A morte, meu caro, e o amor, são os doi únicos
momentos em que a jogralice da vida
arranca a máscara e freme num delírio trágico.
– ?
– Não te rias. Não
componho frases. Justifico-me. Na vida, só deixamos de ser uns palhaços
inconscientes a macaquear-nos uns aos outros, a copiar gestos e a mentir à
natureza, quando esta, reagindo, põe a nu o instinto hirsuto e acena o “basta”
final que recolhe o grotesco ator ao pó. Só há grandeza, em suma, e
“seriedade”, quando cessa de agir o pobre jogral que é o homem feito, guiado e
dirigido por moraes, religiões, códigos, modas e mais postiços de sua invenção
– e entra em cena a natureza bruta.
– A propósito de quê
tanta filosofia, com este calor de janeiro?...
O comboio corria entre S.
José e Quiririm. Região arrozeira, em plena faina do corte. Os campos em sega
tinham o aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. Pura paisagem europeia
de trigais.
A espaços feriam nossos
olhos quadros de Millet, em fuga lenta, ou rápida, se perto. Vultos de mulheres
de cestas à cabeça, que paravam a ver passar o trem. Vultos de homens
amontoando feixes de espigas para a malhação do dia seguinte. Carroções,
tirados a bois, recolhendo o cereal ensacado. E como caia a tarde, e a
Mantiqueira já era uma pincelada opaca de indigo a barrar a imprimadura
evanescente do azul, vimos em certo trecho o original do “Angelus”...
– Já te digo a propósito
de quê vem tanta filosofia.
E, enfiando os olhos pela
janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito, apontando um velho
saguaragi avultado à margem da linha e logo sumido para trás, disse:
– A propósito dessa
árvore que passou. Ela foi comparsa no “meu conto de Maupassant”.
O primeiro sujeito não se
ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de estilo. Sem transição foi
logo narrando.
“Havia um italiano,
morador destas bandas, que tinha vendola na estrada. Tipo mal encarado e ruim.
Bebia, jogava, e por várias vezes andou às voltas com as autoridades. Certa vez
– eu era delegado de polícia – vieram uns piraquaras anunciar que em tal parte
jazia o “corpo morto” de uma velha, picado à foice.
Organizei a diligência e
acompanhei-os – “É lá, naquele saguaragi”, disseram ao aproximarem-se da árvore
que passou. Espetáculo repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de horror que
me correu pelo corpo ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da
velha, semioculta sob as folhas secas. Por que o malvado a decepara do tronco,
lançando-a a alguns metros de distância.
Como por sistema
desconfiasse do italiano, prendi-o. Havia indícios vagos. Viram-no sair com a
foice, a lenhar, na tarde do crime.
Entretanto, por falta de
provas, foi restituído à liberdade, mal grado meu, pois cada vez mais me
capacitava de sua culpabilidade. Eu pressentia naquele sórdido tipo – e
negue-se valor ao pressentimento! – o miserável matador da pobre velhinha.
– Que interesse tinha ele
no crime?
– Nenhum. Era o que
alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial de toda a gente. Não
obstante, eu o trazia de olho, certo de que era o criminoso.
O patife, não demorou
muito, transpassou o negócio e sumiu-se. Eu, do meu lado, deixei a polícia e do
crime só me ficou, nítida, a sensação da topada mole na cabeça da velha.
Anos depois o caso
ressuscitou. A polícia colheu indícios veementes contra a italiano, que andava
por São Paulo num grau extremo de decadência moral, pensionista do xadrez por
furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteram-no para cá onde o júri iria
decidir da sua sorte.
– Os teus
pressentimentos...
O sujeito sorriu com
malícia velhaca, e continuou.
– Não resistiu, não
reagiu, não protestou. Tomou o trem no Braz, e veio de cabeça baixa, sem
proferir palavra, até S, José; dai em diante (quem o conta é um soldado da
escolta) metia a miúde os olhos pela janela, preocupado em descobrir qualquer
coisa na paisagem, até que defrontou o saguaragi. Nesse ponto armou um pincho
de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crâneo rachado,
a escorrer a couve-flor dos miolos, perto da árvore fatal.
– O remorso!
– Está aqui o “meu conto
de Maupassant”. Tive a impressão dele nas palavras do soldado da escolta; “veio
de cabeça baixa até S. José, dai por diante enfiou os olhos pela janela até
enxergar a árvore, e pinchou-se”. No progresso ingênuo da narrativa li toda a
tragédia íntima daquele cérebro, senti todo o drama psicológico que nunca será
escrito...
– É curioso! – comentou o
outro, pensativamente.
Mas o primeiro sujeito
acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com pausada lentidão:
– ?
– Meu caro, aquele pobre Oscar
Fingal O'Flahertie Wills Wilde disse muita coisa, quando disse que a vida sabe
melhor imitar a arte do que a arte sabe imitar a vida.
REFERÊNCIAS:
LINS, Álvaro e Aurélio
Buarque de Hollanda. Roteiro Literário de Portugal e do Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966, p. 380.
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Pedro