12 de out. de 2015

MONTEIRO LOBATO – Meu conto de Maupassant


– PEDRO LUSO DE CARVALHO

MONTEIRO LOBATO (José Bento Monteiro Lobato) nasceu a 18 de abril de 1882, em Taubaté, São Paulo, e morreu a 4 de julho de 1948, na capital paulista, aos 66 anos. Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda disseram  que Monteiro Lobato tem a glória de haver criado um tipo nacional – o Jeca Tatu, e que ele apareceu nas letras por acaso, em 1914, quando enviou ao Estado de São Paulo, para a seção “Queixas e Reclamações” uma carta, “Velha Praga” contra a queima de matas de fazendas circunjacentes. Tornou-se articulista do jornal.
Monteiro Lobato formou-se em Direito, foi promotor público e fazendeiro. Vendeu a propriedade, e se transferiu para São Paulo. onde adquiriu e dirigiu a Revista do Brasil. É considerado o verdadeiro fundador da indústria do livro em nosso país. “A figura de Monteiro Lobato – escreve Gilberto Freire – há de guardá-la não apenas a história literária do Brasil, mas a própria história do povo e da nacionalidade brasileira; aquela história que às vezes é escrita com sangue. Ele foi um dos iniciadores mais vigorosos da fase atual da literatura em nosso país”.
OBRAS: Urupês, 1918; Cidades mortas, 1921; A onda verde, 1921; Mundo da lua, 1923; O ferro, 1931; Na antevéspera, 1933; Contos pesados, Contos leves, América, Narizinho arrebitado, As caçadas de Pedrinho, Emília no País da Gramática, Aritmética de Emília, Histórias do mundo para as crianças, Urupês, Outros Contos e Coisas, A barca de Gleyre; etc.
O conto de Monteiro Lobato, intitulado Meu conto de Maupassant, que integra o livro Contos pesados, da Coleção Grandes Livros Brasileiros, v. II, publicado pela Companhia Editora Nacional, São Paulo, 193?, p. 237-240, é transcrito na íntegra, como segue:

MEU CONTO DE MAUPASSANT
– MONTEIRO LOBATO

Conversavam no trem dois sujeitos. Aproximei-me e ouvi:
– Anda a vida cheia de contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimos Guys...
– Por que Maupassant e não Kipling, por exemplo?
– Porque a vida é amor e morte e a arte de Maupassant é simplesmente um enquadramento engenhoso do amor e da morte. Mudam-se os cenários, variam os atores, mas a substância persiste – o amor sob a única face impressionante, a que culmina numa posse violenta de fauno incendido de luxúria, e a morte, o estertor da vida em transe, o quinto ato, o epílogo fisiológico. A morte, meu caro, e o amor, são os doi únicos momentos em que a jogralice  da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico.
– ?
– Não te rias. Não componho frases. Justifico-me. Na vida, só deixamos de ser uns palhaços inconscientes a macaquear-nos uns aos outros, a copiar gestos e a mentir à natureza, quando esta, reagindo, põe a nu o instinto hirsuto e acena o “basta” final que recolhe o grotesco ator ao pó. Só há grandeza, em suma, e “seriedade”, quando cessa de agir o pobre jogral que é o homem feito, guiado e dirigido por moraes, religiões, códigos, modas e mais postiços de sua invenção – e entra em cena a natureza bruta.
– A propósito de quê tanta filosofia, com este calor de janeiro?...
O comboio corria entre S. José e Quiririm. Região arrozeira, em plena faina do corte. Os campos em sega tinham o aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. Pura paisagem europeia de trigais.
A espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em fuga lenta, ou rápida, se perto. Vultos de mulheres de cestas à cabeça, que paravam a ver passar o trem. Vultos de homens amontoando feixes de espigas para a malhação do dia seguinte. Carroções, tirados a bois, recolhendo o cereal ensacado. E como caia a tarde, e a Mantiqueira já era uma pincelada opaca de indigo a barrar a imprimadura evanescente do azul, vimos em certo trecho o original do “Angelus”...
– Já te digo a propósito de quê vem tanta filosofia.
E, enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito, apontando um velho saguaragi avultado à margem da linha e logo sumido para trás, disse:
– A propósito dessa árvore que passou. Ela foi comparsa no “meu conto de Maupassant”.
O primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de estilo. Sem transição foi logo narrando.
“Havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada. Tipo mal encarado e ruim. Bebia, jogava, e por várias vezes andou às voltas com as autoridades. Certa vez – eu era delegado de polícia – vieram uns piraquaras anunciar que em tal parte jazia o “corpo morto” de uma velha, picado à foice.  
Organizei a diligência e acompanhei-os – “É lá, naquele saguaragi”, disseram ao aproximarem-se da árvore que passou. Espetáculo repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de horror que me correu pelo corpo ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da velha, semioculta sob as folhas secas. Por que o malvado a decepara do tronco, lançando-a a alguns metros de distância.
Como por sistema desconfiasse do italiano, prendi-o. Havia indícios vagos. Viram-no sair com a foice, a lenhar, na tarde do crime.
Entretanto, por falta de provas, foi restituído à liberdade, mal grado meu, pois cada vez mais me capacitava de sua culpabilidade. Eu pressentia naquele sórdido tipo – e negue-se valor ao pressentimento! – o miserável matador da pobre velhinha.
– Que interesse tinha ele no crime?
– Nenhum. Era o que alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial de toda a gente. Não obstante, eu o trazia de olho, certo de que era o criminoso.
O patife, não demorou muito, transpassou o negócio e sumiu-se. Eu, do meu lado, deixei a polícia e do crime só me ficou, nítida, a sensação da topada mole na cabeça da velha.
Anos depois o caso ressuscitou. A polícia colheu indícios veementes contra a italiano, que andava por São Paulo num grau extremo de decadência moral, pensionista do xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteram-no para cá onde o júri iria decidir da sua sorte.
– Os teus pressentimentos...
O sujeito sorriu com malícia velhaca, e continuou.
– Não resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o trem no Braz, e veio de cabeça baixa, sem proferir palavra, até S, José; dai em diante (quem o conta é um soldado da escolta) metia a miúde os olhos pela janela, preocupado em descobrir qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o saguaragi. Nesse ponto armou um pincho de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crâneo rachado, a escorrer a couve-flor dos miolos, perto da árvore fatal.
– O remorso!
– Está aqui o “meu conto de Maupassant”. Tive a impressão dele nas palavras do soldado da escolta; “veio de cabeça baixa até S. José, dai por diante enfiou os olhos pela janela até enxergar a árvore, e pinchou-se”. No progresso ingênuo da narrativa li toda a tragédia íntima daquele cérebro, senti todo o drama psicológico que nunca será escrito...
– É curioso! – comentou o outro, pensativamente.
Mas o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com pausada lentidão:
– ?
– Meu caro, aquele pobre Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde disse muita coisa, quando disse que a vida sabe melhor imitar a arte do que a arte sabe imitar a vida.



REFERÊNCIAS:
LINS, Álvaro e Aurélio Buarque de Hollanda. Roteiro Literário de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966, p. 380.


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Pedro