A obra
de Tchekhov contém histórias de pessoas comuns da sociedade russa, pessoas
simples que viviam em Moscou, nas pequenas cidades e vilas camponesas; cada uma
dessas pessoas tinha no dia-a-dia de suas vidas, que vencer uma luta feroz
contra as privações materiais que ameaçavam sua sobrevivência nas cidades, nas
vilas e nos campos, onde a miséria os rondava; essa realidade foi, em grande
parte, a matéria-prima de suas histórias.
Era tal
o talento e o gosto de Tchekhov pelo conto e novela que nunca sentiu
necessidade e inspiração para produzir obra mais alentada, como é o caso do
romance; talvez Tchekhov tenha sido o único escritor russo de escol que nunca
escreveu um único romance; não o fez simplesmente por ter seu interesse
literário voltado para a narrativa curta, da qual foi mestre.
Anton Pavlovitch
Tchekhov nasceu a 29 de novembro de 1860, em Taganrog, Rússia, e morreu em
1904, aos 44 anos de idade, em Badenweiler, Alemanha. Passou os últimos
momentos de vida com sua esposa, a atriz Olga Knipper, sabendo que personagens
e histórias que escreveu a ele sobreviveriam.
Segue na íntegra o
conto de Anton Tchekhov, Um homem extraordinário (In Tchekhov/Um homem extraordinário.
Tradução de Tatiana Belinky. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008, p. 90-95):
[ESPAÇO DO CONTO]
UM HOMEM EXTRAORDINÁRIO
[ANTON
TCHEKHOV]
PASSA DE MEIA-NOITE. Diante
da porta Mária Pietróvna Kóchkina, parteira-solteirona, para um senhor alto, de
cartola e redingote de capuz. Na escuridão outonal não se pode distinguir nem o
rosto nem as mãos, mas já na maneira de pigarrear e de puxar a campainha
percebe-se seriedade, positividade e uma certa autoridade. Após o terceiro
toque, a porta se abre e aparece a própria Mária Pietróvna. Por cima da saia
branca, ela jogou um casaco masculino. A pequena lâmpada de abajur verde que
ela tem nas mãos tinge de verde o seu rosto sardento, amarrotado de sono, o
pescoço venoso e os cabelinhos ralos e aloirados que lhe escapam de sob a toca.
– Posso falar com a
parteira? – pergunta o cavalheiro.
– Sou eu mesma a parteira. O
que deseja?
O cavalheiro entra no
vestíbulo, e Mária Pietróvna vê à sua frente um homem alto e bem–proporcionado,
já não jovem mas de rosto bonito e severo e suíças felpudas.
– Sou o assessor colegiado
Kiriákov – diz ele. – Vim procurá-la para a minha mulher. Mas o mais depressa
possível, por favor.
– Está bem... – concorda a
parteira. – Já vou me vestir, enquanto o senhor tem a bondade de me esperar na
sala. A luz verde da lâmpada cai fracamente sobre a mobília barata coberta de
forros brancos remendados, sobre as pobres flores, os batentes pelos quais
sobem heras... Há um odor de gerânio e fenol. Um reloginho de parece
tiquetaqueia timidamente, como que embaraçado diante do homem estranho.
– Estou pronta, senhor! – diz Mária Pietróvna, entrando na sala uns
cinco minutos mais tarde, já vestida, lavada e desperta. – Vamos indo?
– Sim, é preciso ir logo...
– diz Kiriákov. – A propósito, uma pergunta necessária: quanto a senhora
cobrará pelos seus serviços?
– Realmente, não sei... –
sorri Mária Petróvna, encabulada. – Quanto o senhor me der...
– Não, dessas coisas eu não
gosto – diz Kiriákov, fitando a parteira com um olhar frio e imóvel. – Não
preciso do que é seu, nem a senhora precisa do que é meu. Para evitar
mal-entendidos, será mais sensato que combinemos antes.
– Mas, realmente, eu não
sei... Não há um preço fixo.
– Eu mesmo trabalho e
costumo dar valor ao trabalho alheio. Não gosto de injustiças. Para mim será
igualmente desagradável se eu pagar menos ou me cobrar a mais, e por isso
insisto que a senhora me diga o seu preço.
– Mas se existem preços
diferentes!
– Hum!... Em vista de suas
hesitações, que me são incompreensíveis, devo eu mesmo fixar o preço. Posso
dar-lhe dois rublos...
– O que é isso, por favor...
– diz Mária Petróvna, recuando. – Eu fico até sem jeito... Para aceitar dois
rublos, então já é melhor fazer de graça. Se quiser, por cinco rublos...
– Dois rublos, nem mais um
copeque. Não preciso do que é seu, tampouco estou disposto a pagar em excesso.
– Como quiser, senhor. Mas
por dois rublos eu não irei...
– Mas por lei a senhora não
tem o direito de recusar.
– Pois não, eu irei de
graça.
– De graça eu não quero.
Todo trabalho tem de ser recompensado. Eu mesmo trabalho e compreendo...
– Por dois rublos eu não
vou, senhor... – declara Mária Petróvna mansamente. – Se quiser, de graça...
– Neste caso lamento muito
tê-la incomodado inutilmente... Tenho a honra de me despedir.
– Como o senhor é, realmente... – diz a
parteira, acompanhando Kiriákov até o vestíbulo. – Se faz tanta questão, pois
não, eu irei por três rublos.
Kiriákov franze o cenho e
pensa por dois minutos inteiros, olhando concentradamente para o chão, depois
diz um “não!” resoluto e sai para a rua. A perplexa e constrangida parteira
tranca a porta atrás dele e volta para o seu dormitório.
“É bonito, imponente, mas
como é esquisito, por Deus...”, pensa ela, deitando-se.
Mas não passa nem meia hora,
quando a campainha torna a soar; ela se levanta e vê no vestíbulo o mesmo
Kiriákov.
– Estranha desorganização! – diz ele. – Nem na
farmácia, nem os policiais, nem os caseiros, ninguém conhece endereços de
parteiras, e desta forma eu me vejo colocado diante da necessidade de concordar
com as suas condições. Eu lhe darei os três rublos, mas... advirto-a de que ao
contratar empregados e ao fazer uso de qualquer tipo de serviço eu combino de
antemão que no ato do pagamento não haja conversa sobre acréscimos, gorjetas
etc. Cada um deve receber o seu.
Mária Petróvna escuta Kiriákov
faz pouco tempo, mas sente que já está farta dele, que ele lhe é repulsivo, que
o seu discurso plano e comedido deita-se como um peso sobre a sua alma. Ela se
veste e sai com ele para a rua. O ar está silencioso, mas tão frio e
enfarruscado que mal se podem ver até mesmo as luzes dos postes de iluminação.
Debaixo dos pés a lama soluça. A parteira fixa os olhos, mas não vê
carruagem...
– Não deve ser longe? – pergunta
ela.
– Não é longe – responde Kiriákov taciturno.
Eles passam por uma
travessa, outra, a terceira... Kiriákov marcha, e até no seu andar mostra-se a
positividade e a autoridade.
– Que tempo horroroso! –
puxa conversa a parteira.
Mas ele se cala solidamente
e visivelmente procura pisar nas pedras lisas, para não estragar as galochas.
Finalmente, após longa caminhada, a parteira entra no vestíbulo; dali vê-se uma
grande sala, decentemente arrumada. Nos quartos, até mesmo no dormitório onde
está deitada a parturiente, nem vivalma...Parentes e velhotas, que pululam em
qualquer recinto de parto, aqui estão ausentes. Agita-se como uma condenada
apenas uma cozinheira de cara obtusa e assustada. Ouvem-se gemidos altos.
Passam-se três horas. Mária
Pietróvna está ao lado da cama da parturiente, cochichando alguma coisa. As
duas mulheres já tiveram tempo de travarem conhecimento, de se reconhecerem, de
tagarelarem, suspirarem...
– A senhora não pode falar!
Preocupa-se a parteira, mas ela mesma não para de despejar perguntas.
Mas eis que se abre a porta
e, quieto, ponderado, entra no quarto o próprio Kiriákov. Senta-se numa cadeira
e alisa as suíças. Faz-se um silêncio... Mária Pietrovna lança olhares tímidos
para o seu rosto bonito mas inexpressivo como madeira e espera que ele comece a
falar. Mas ele permanece obstinadamente calado, pensando em alguma coisa. A
espera é inútil, e a parteira decide ela mesma começar a conversa e pronuncia
uma frase que geralmente se diz durante os partos:
– Pois é, graças a Deus, há
um ser humano a mais no mundo!
– Sim, é agradável – diz Kiriákov, conservando
a expressão de madeira no rosto –, se bem que, por outro lado, para se ter
filhos supérfluos, é preciso ter dinheiro supérfluo. Uma criança não nasce alimentada
e vestida.
No rosto da parturiente surge
uma expressão culpada, como se ela tivesse posto no mundo um ser vivo sem
permissão ou por puro capricho. Kiriákov levanta com um suspiro e sai ponderadamente.
– Mas como ele é com a
senhora, meu Deus... – diz a parteira à parturiente. – Tão severo e não sorri.
A parturiente conta que ele,
o marido, é sempre assim... honesto, justo, ponderado, sensatamente econômico,
mas tudo isso em dimensões tão extraordinárias, que os simples mortais
sentem-se sufocados. Os parentes afastaram-se dele, os criados não param mais
que um mês, conhecidos não há, a mulher e os filhos estão sempre tensos de medo
com cada um dos seus passos. Ele não bate, não grita, tem muito mais virtudes
que defeitos, mas quando ele sai de casa, todos se sentem mais leves e
saudáveis. Por que razão isto é assim a própria parturiente não é capaz de
compreender.
– É preciso limpar bem as
bacias e guardá-las na dispensa – diz Kiriákov, tornando a entrar no
dormitório.
– Estes vidros também é preciso
guardá-los, podem vir a ser úteis.
O que ele diz é simples e
comezinho, mas a parteira sente um estranho mal-estar. Ela começa a ter medo
desse homem e estremece toda vez que ouve os seus passos... De manhã,
preparando-se para partir, ela vê na sala de jantar o filho pequeno de Kiriákov,
um ginasiano pálido de cabeça raspada, tomando chá... De pé, diante dele, está
Kiriákov e fala com a sua voz pausada e igual:
– Você sabe comer, pois
saiba também trabalhar. Agora mesmo você deu um gole, mas não pensou, decerto,
que esse gole custa dinheiro, e o dinheiro se consegue trabalhando. Pois coma e
pense...
A parteira olha para o rosto
sem expressão do menino e parece-lhe que até o ar está pesado, e que mais um
pouco as paredes ruirão, não suportando a presença opressiva do homem
extraordinário. Fora de si de medo, e já sentindo um forte ódio por esse homem,
Mária Pretróvna apanha suas trouxinhas e sai apressadamente.
No meio do caminho,
lembra-se de que esqueceu de receber os seus três rublos, mas depois de parar e
pensar um pouco, faz um gesto de desistência com a mão e continua a caminhar.
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REFERÊNCIAS:
TCHEKHOV, Anton. Um homem
extraordinário. Tradução de Tatiana Belinky. Porto Alegre: L&PM Pocket,
2008, p. 90-95):
TCHEKHOV, Anton. In: As
três irmãs e contos. Tradução e apresentação de Boris Schnaiderman. São Paulo:
Abril Cultural, 1979.
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Belo conto, parabéns!
ResponderExcluirComo resenha também é notável :) Abç
Um grande conto, Pedro Luso. Belamente apresentado. Ando com vontade de relê-lo, agora ainda mais.
ResponderExcluirAbraços.
Um resumo bastante agradável de seguir e perceber.
ResponderExcluirA vida na Rússia retratada pela pena de um bom escritor- Tchekhov.
Por sua indicação, comprei o livro que tem este e outros contos. Absolutamente esplêndido. Obrigado meu amigo Pedro!
ResponderExcluirCesar
Caro Pedro,
ResponderExcluirTchekov é extraordinário e a sua resenha nos induz a querer ler ou reler as obras contempladas pelos seus textos.
Um abraço
Gostaria de saber se tem como baixar o conto"A Enfermaria n°6 em PDF...muito obrigada.
ResponderExcluirGostaria muito de saber se tem como baixar esse conto em PDF..Obrigada..gostaria muito e lê-lo.
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