Liev Tolstói |
por Pedro Luso de Carvalho
No final da segunda parte do texto sobre Tolstói, transcrevi trecho do ensaio de Harold Bloom, in O Cânone Ocidental, no qual o crítico diz que as opiniões do escritor sobre o casamento e a família são dolorosas, e que a sua posição em relação à sexualidade humana é misogenica, mesmo casado e com treze filhos. Bloon faz justiça a Tolstói, no entanto, quando escreve: “Claro, tudo isso se aplica ao Tolstói discursivo, não ao escritor de ficção, mesmo no último romance Ressurreição, ou em novelas posteriores como O Diabo e a sua famosa Sonata a Kreutzer. Tão poderoso e constante é o talento narrativo dele que as suas digressões moralizantes não desfiguram muito a sua ficção, nem a torna chata.”
Nesta terceira parte, continuarei ainda nessa fase da vida de Tolstói, que se inicia aos cinquenta anos de idade, quando abandona a literatura e passa a se interrogar sobre a sua vida, e, principalmente, sobre o sentido da vida. Quando se torna adepto da filosofia para buscar respostas a essas indagações, nas leituras aleatórias que faz de filósofos como Schopenhauer, Platão, Kant, Pascal. Quando se afasta dos filósofos por não ter encontrado neles uma resposta para os problemas que o afligem. Quando se dirige a religião na busca de consolo e percebe que a Igreja Católica Ortodoxa não ensina a verdadeira doutrina de Cristo, e então passa a fazer a sua própria interpretação do Evangelho. Quando se ve banido da igreja e por ela é excomungado.
Voltado para esses questionamentos, Tolstói pergunta-se: “Que erro havia na minha vida?” Questiona-se ainda: “Que erro há na vida de todos nós?” Tolstói começa então a ver os contrastes existentes na sociedade russa: pobreza e riqueza, luxo e miséria. Logo pensa em por termo a essa injustiça, sentindo ser ele próprio um dos algozes dos desafortunados, homem de posses que era. O escritor dá-se conta dessas injustiças sociais quando se encontra em Moscou, em 1881. Aí Tolstói, pela primeira vez, entra em contato com a questão social, como diz Stefan Zweig: “No livro O que devemos fazer? descreve sob uma forma perturbadora o seu primeiro encontro com a miséria em massa da grande cidade”. Tolstói apenas percebe a existencia da pobreza nos vilarejos e nos campos. Falta a ele ver, pois, a perturbadora miséria do proletariado, que se concentra nas cidades industriais, que, como diz Zweig, era o produto de uma civilização industrial.
Agora consciente dessa triste realidade, Tolstói avança lentamente no sentido de contribuir para minorar os sofrimentos de seus semelhantes, e então passa dar esmolas por meio de uma organização de beneficencia; mas, não tarda a ver que isso não ajudará a mudar a condição social do povo russo. Para ele “somente o ouro não será bastante para transformar a trágica existencia dessa gente”. Ele, que tem agora consciencia de que todo o sistema social terá que sofrer uma mudança completa, escreve: “Entre nós, os ricos e os pobres, se levanta a barreira de uma falsa educação e, antes que possamos ajudar os miseráveis é preciso derrubá-la. Cheguei finalmente à conclusão de que a verdadeira causa da miséria dos pobres é a nossa riqueza”. Estando certo de que há alguma coisa falsa na organização social, o seu objetivo agora é trabalhar para que os russos passem a ser instruídos. Só isso, pensa Tolstói, poderá reparar toda a monstruosa injustiça social.
Na sua obra Tolstói diz Stefan Zweig: “De motu proprio e consciente de uma moral pura – é aqui que começa o tolstoísmo – Tolstói visa unicamente uma revolução moral, isenta de violencia que, o mais cedo possível, operaria aquele nivelamento e pouparia à humanidade uma outra revolta – a sangrenta. Uma revolta vinda da consciencia, uma revolta realizada pela renúncia espontanea dos ricos às riquezas, dos ociosos à inação, pela próxima redistribuição do trabalho segundo o sentido expresso por Deus: onde ninguém se ache sobrecarregado para alijar a outrem, e todos tenham somente as mesmas necessidades. O luxo, daí por diante, não é para ele mais do que a flor venenosa deste charco, fazendo-se mister extirpá-la, pelo amor da igualdade entre os homens. Ciente disso, Tolstói trava contra a propriedade um combate cem vezes mais encarniçado do que o de Karl Marx e Poudhom.
Essa é a sua luta para ver a metamorfose social, com a distribuição das riquezas, tirando boa parte das propriedades dos ricos para serem repassadas aos pobres, de forma direta ou indireta, visando o equilíbrio social. Tolstói pregava que “A propriedade é hoje em dia, a raiz de todo o mal. Ela causa o sofrimento dos que possuem e dos que não a possuem. O perigo dum conflito entre os que dispõe do supérfluo e os que vivem na pobreza é inevitável. Todo o mal começa com a propriedade”. Para Tolstói, o Estado erra ao defender o princípio da propriedade, que, para ele, trata-se de atitude não apenas anti-cristã, mas também de atitude anti-social.
Nessa época de desequilíbrio social na Rússia, com a miséria ceifando vidas precocemente, de um lado, e da prevalencia da vontade dos ricos, de outro, a inércia do Estado denotava uma forte cumplicidade com os poderosos. Tolstói, que com isso não mais se conforma, e escreve:
“Os Estados e os governos intrigam e entram em guerra, ora para possuir as margens do Reno ou terras na África, ora a China e os Balcãs; os banqueiros, os comerciantes, os fabricantes e os proprietários rurais não trabalham, não fazem projetos e não se atormentam, a si e aos outros, senão pelo desejo de possuir. Levados pelo mesmo desejo os empregados lutam, enganam, oprimem e sofrem. Nossos tribunais e nossa polícia sustentam a propriedade. Nossas colonias penitenciárias e prisões, todos os erros que chamamos repressão do crime, somente existem para proteger a propriedade”.
Para Tolstói, o Estado é o único responsável pela injustiça social. Para ele, o Estado cria mecanismos para proteger a propriedade. O Estado impõe com violencias sua vontade, como centro de um sistema, que, para sustentá-lo, tem suas ramificações nos poderes legislativo executivo e judiciário. Tolstói opõe-se ao serviço militar obrigatório por não achar justificativa para que alguém se dobre às ordens do Estado, e que, com uma palavra de ordem, sirva de instrumento para matar alguém que desconhece, e que a isso se opõe.
O escritor Henry Thomas diz que “Tolstói estava fadado a sobreviver a sua própria grandeza. Durante os últimos dez anos de sua vida ele bateu-se por um ideal social político e ético só possível num mundo de super-homens... ou de velhos. Com os anos, cada vez mais avultava nele o filósofo profundo e a criança simples”.
É minha intenção continuar escrevendo sobre a vida e a obra e Liev Tolstói, talvez ainda abordando essa fase da vida do escritor em que se encontrava preocupado em trabalhar para mudar o sistema vigente em sua pátria, visando impor uma justiça social na sua Rússia dividida entre ricos e miseráveis. (Para ler a primeira parte do texto, clique em LIEV TOLSTÓI – Parte Final.)
REFERENCIAS:
No final da segunda parte do texto sobre Tolstói, transcrevi trecho do ensaio de Harold Bloom, in O Cânone Ocidental, no qual o crítico diz que as opiniões do escritor sobre o casamento e a família são dolorosas, e que a sua posição em relação à sexualidade humana é misogenica, mesmo casado e com treze filhos. Bloon faz justiça a Tolstói, no entanto, quando escreve: “Claro, tudo isso se aplica ao Tolstói discursivo, não ao escritor de ficção, mesmo no último romance Ressurreição, ou em novelas posteriores como O Diabo e a sua famosa Sonata a Kreutzer. Tão poderoso e constante é o talento narrativo dele que as suas digressões moralizantes não desfiguram muito a sua ficção, nem a torna chata.”
Nesta terceira parte, continuarei ainda nessa fase da vida de Tolstói, que se inicia aos cinquenta anos de idade, quando abandona a literatura e passa a se interrogar sobre a sua vida, e, principalmente, sobre o sentido da vida. Quando se torna adepto da filosofia para buscar respostas a essas indagações, nas leituras aleatórias que faz de filósofos como Schopenhauer, Platão, Kant, Pascal. Quando se afasta dos filósofos por não ter encontrado neles uma resposta para os problemas que o afligem. Quando se dirige a religião na busca de consolo e percebe que a Igreja Católica Ortodoxa não ensina a verdadeira doutrina de Cristo, e então passa a fazer a sua própria interpretação do Evangelho. Quando se ve banido da igreja e por ela é excomungado.
Voltado para esses questionamentos, Tolstói pergunta-se: “Que erro havia na minha vida?” Questiona-se ainda: “Que erro há na vida de todos nós?” Tolstói começa então a ver os contrastes existentes na sociedade russa: pobreza e riqueza, luxo e miséria. Logo pensa em por termo a essa injustiça, sentindo ser ele próprio um dos algozes dos desafortunados, homem de posses que era. O escritor dá-se conta dessas injustiças sociais quando se encontra em Moscou, em 1881. Aí Tolstói, pela primeira vez, entra em contato com a questão social, como diz Stefan Zweig: “No livro O que devemos fazer? descreve sob uma forma perturbadora o seu primeiro encontro com a miséria em massa da grande cidade”. Tolstói apenas percebe a existencia da pobreza nos vilarejos e nos campos. Falta a ele ver, pois, a perturbadora miséria do proletariado, que se concentra nas cidades industriais, que, como diz Zweig, era o produto de uma civilização industrial.
Agora consciente dessa triste realidade, Tolstói avança lentamente no sentido de contribuir para minorar os sofrimentos de seus semelhantes, e então passa dar esmolas por meio de uma organização de beneficencia; mas, não tarda a ver que isso não ajudará a mudar a condição social do povo russo. Para ele “somente o ouro não será bastante para transformar a trágica existencia dessa gente”. Ele, que tem agora consciencia de que todo o sistema social terá que sofrer uma mudança completa, escreve: “Entre nós, os ricos e os pobres, se levanta a barreira de uma falsa educação e, antes que possamos ajudar os miseráveis é preciso derrubá-la. Cheguei finalmente à conclusão de que a verdadeira causa da miséria dos pobres é a nossa riqueza”. Estando certo de que há alguma coisa falsa na organização social, o seu objetivo agora é trabalhar para que os russos passem a ser instruídos. Só isso, pensa Tolstói, poderá reparar toda a monstruosa injustiça social.
Na sua obra Tolstói diz Stefan Zweig: “De motu proprio e consciente de uma moral pura – é aqui que começa o tolstoísmo – Tolstói visa unicamente uma revolução moral, isenta de violencia que, o mais cedo possível, operaria aquele nivelamento e pouparia à humanidade uma outra revolta – a sangrenta. Uma revolta vinda da consciencia, uma revolta realizada pela renúncia espontanea dos ricos às riquezas, dos ociosos à inação, pela próxima redistribuição do trabalho segundo o sentido expresso por Deus: onde ninguém se ache sobrecarregado para alijar a outrem, e todos tenham somente as mesmas necessidades. O luxo, daí por diante, não é para ele mais do que a flor venenosa deste charco, fazendo-se mister extirpá-la, pelo amor da igualdade entre os homens. Ciente disso, Tolstói trava contra a propriedade um combate cem vezes mais encarniçado do que o de Karl Marx e Poudhom.
Essa é a sua luta para ver a metamorfose social, com a distribuição das riquezas, tirando boa parte das propriedades dos ricos para serem repassadas aos pobres, de forma direta ou indireta, visando o equilíbrio social. Tolstói pregava que “A propriedade é hoje em dia, a raiz de todo o mal. Ela causa o sofrimento dos que possuem e dos que não a possuem. O perigo dum conflito entre os que dispõe do supérfluo e os que vivem na pobreza é inevitável. Todo o mal começa com a propriedade”. Para Tolstói, o Estado erra ao defender o princípio da propriedade, que, para ele, trata-se de atitude não apenas anti-cristã, mas também de atitude anti-social.
Nessa época de desequilíbrio social na Rússia, com a miséria ceifando vidas precocemente, de um lado, e da prevalencia da vontade dos ricos, de outro, a inércia do Estado denotava uma forte cumplicidade com os poderosos. Tolstói, que com isso não mais se conforma, e escreve:
“Os Estados e os governos intrigam e entram em guerra, ora para possuir as margens do Reno ou terras na África, ora a China e os Balcãs; os banqueiros, os comerciantes, os fabricantes e os proprietários rurais não trabalham, não fazem projetos e não se atormentam, a si e aos outros, senão pelo desejo de possuir. Levados pelo mesmo desejo os empregados lutam, enganam, oprimem e sofrem. Nossos tribunais e nossa polícia sustentam a propriedade. Nossas colonias penitenciárias e prisões, todos os erros que chamamos repressão do crime, somente existem para proteger a propriedade”.
Para Tolstói, o Estado é o único responsável pela injustiça social. Para ele, o Estado cria mecanismos para proteger a propriedade. O Estado impõe com violencias sua vontade, como centro de um sistema, que, para sustentá-lo, tem suas ramificações nos poderes legislativo executivo e judiciário. Tolstói opõe-se ao serviço militar obrigatório por não achar justificativa para que alguém se dobre às ordens do Estado, e que, com uma palavra de ordem, sirva de instrumento para matar alguém que desconhece, e que a isso se opõe.
O escritor Henry Thomas diz que “Tolstói estava fadado a sobreviver a sua própria grandeza. Durante os últimos dez anos de sua vida ele bateu-se por um ideal social político e ético só possível num mundo de super-homens... ou de velhos. Com os anos, cada vez mais avultava nele o filósofo profundo e a criança simples”.
É minha intenção continuar escrevendo sobre a vida e a obra e Liev Tolstói, talvez ainda abordando essa fase da vida do escritor em que se encontrava preocupado em trabalhar para mudar o sistema vigente em sua pátria, visando impor uma justiça social na sua Rússia dividida entre ricos e miseráveis. (Para ler a primeira parte do texto, clique em LIEV TOLSTÓI – Parte Final.)
REFERENCIAS:
ZWEIG, Stefan. Tolstói. Tradução de Lígia Autran Rodrigues Pereira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961.
THOMAS, Henry e Dana Lee Thomas. Vida de grandes romancistas. Tradução de James Amado. 3ª ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1957.
* * * * * *
Pedro,
ResponderExcluirComecei hoje a leitura do percurso existencial/histórico de Tolstoi e estou empolgado em continuar esse trajeto. Abraço.
Pedro,
ResponderExcluirestou acompanhando as suas postagens. Admiro a sua dedicação a um tema - e Tolstoi é um tema apaixonante mesmo.
bjs
Gosto muito dos artigos do seu Blog. Quando for possível dá uma passadinha para ver meu Curso de Informática online. Emily Nascimento
ResponderExcluirTolstói teria sido um visionário ou um idealista?Não sei se toda a luta por ele empenhada para impôr uma justiça social... seria por lamentar a pobreza ou...para se penintenciar daquilo que ele chamava "os meus erros"...
ResponderExcluirParabens por este trabalho exaustivo.
Ficarei à espera da continuação.
Beijo
Graça