– PEDRO LUSO DE CARVALHO
LIMA BARRETO é, sem dúvida, um dos nomes mais
importantes da literatura brasileira. Nasceu no dia 13 de maio de 1881, no Rio
de Janeiro, onde morreu, em 1 de novembro de 1922, com 41 anos. Iniciou os seus
estudos aos seis anos, no Liceu Popular Niteroiense; aos onze anos concluiu os
preparatórios no Colégio Pedro II; passou a estudar na Escola Politécnica;
viu-se obrigado a interromper o curso, deixando, pois, de receber o diploma de
bacharel, para ajudar no sustento da família, por ser ele o filho mais velho,
depois que seu pai foi acometido de grave doença mental. Para atingir esse
objetivo, Afonso Henriques de Lima Barreto prestou concurso público para a
Secretaria da Guerra; aprovado, foi nomeado para o cargo de terceiro-oficial.
Uma vez efetivado para o cargo, na Secretaria
da Guerra, Lima Barreto passou a colaborar em pequenos jornais de estudantes.
Aí começaria a sua carreira de escritor. Nessa época, encontrava-se indeciso
quanto à escolha do gênero literário, se ensaio ou ficção. Depois de ter
desistido de um projeto de escrever uma história da escravidão no Brasil,
decidiu que seria romancista, e como tal se distinguiria pelo talento e
honestidade, colocados em suas obras: Recordações
do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste
Fim de Policarpo Quaresma (1915), Numa
e a Ninfa (1915), Vida e Morte de M.
J. Gonzaga de Sá (1919), Histórias e
Sonhos (1920), Os Bruzundangas
(1922), Bagatelas (1923), entre
outros; estas duas últimas obras foram publicadas depois da morte do autor.
Essa vigorosa obra passou a ser recebida com
respeito pela crítica literária. Manoel Bandeira escreveu sobre Lima Barreto:
“Incorreto de linguagem, mas penetrante na observação dos costumes e da
paisagem urbana e suburbana de sua cidade natal”. Depois das publicações
póstumas de Os Bruzundangas e Bagatelas, o romancista caiu no
esquecimento de forma inexplicável. Em 1930, um pequeno grupo de amigos tenta
chamar a atenção para a obra do escritor. A imprensa acompanhou o movimento;
Agrippino Grieco escreve o primeiro artigo para reabilitar o escritor,
tratando-o como “o maior e o mais brasileiro de nossos romancistas”.
Os movimentos para a reabilitação do escritor
merece um texto à parte, que poderá ser abordado neste espaço, em outra
ocasião. Por enquanto, ficaremos com este texto, falando da vida e da obra de
Lima Barreto, que, ainda jovem, lia na Biblioteca Nacional e na Escola
Politécnica, onde estudava os volumes de Descartes, Condillac, Condorcet, Kant,
Spencer e Comte. Em especial, o livro que mais o influenciou nessa fase de
aprendizado: “Discurso do Método”, de Descartes.
Sobre o seu primeiro livro, Recordações do
Escrivão Isaías Caminha, pretendeu, simplesmente, diz o próprio romancista,
mostrar que “um rapaz nas condições de Isaías, com todas as disposições, pode
falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado,
prensado pelo preconceito”. E, diz mais, na mesma carta: “Não sei como me saí
da empresa. Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e
provocar a atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas
foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos
nossos mandarins literários”.
O fato de ser ele mulato, neto de escravos,
filho de uma escrava e de um português, levou-o a sentir o peso do preconceito
racial, sentimento esse que viria contribuir para que ele se tornasse um
escritor profundo, bem diferente dos demais escritores de sua época, na sua
maioria. Naqule tempo, o preconceito que existia no Brasil era muito mais
intenso que nos dias atuais, sem dúvida. Mas mesmo assim Veiga Miranda publicou
um artigo em São Paulo sobre Recordações do Escrivão Isaías Caminha, e
discordou do escritor: “Estamos muito longe dos Estados Unidos. Poder-se-ia
dizer antes que uma dose de mulatice até influi favoravelmente na carreira do
indivíduo”.
Lima Barreto não deixou de responder a Veiga
Miranda, e o fez de forma clara e irrefutável: “Quanto ao preconceito de cor,
diz o senhor que ele não existe entre nós. Houve sempre uma quizília que se ia
fazendo preconceito quando o Senhor Rio Branco tratou de “eleganciar” o Brasil.
Isto não se prova, sei bem; mas se não tenho provas judiciais, tenho muito por
onde concluir. Porque aí, em São Paulo, e em Campinas também, há sociedades de
homens de cor? Hão de ter surgido devido a algum impulso do meio, tanto que no
resto do Brasil não as há”. Quanto a não haver sociedades de gente de cor fora
de São Paulo e de Campinas, como diz Lima, este não poderia dizer o mesmo se
tivesse vivido em torno dos anos 50 em diante, quando essas sociedades eram, e
talvez ainda sejam, encontradas em outros Estados da União, como, por exemplo,
no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.
Francisco de Assis Barbosa posiciona-se quanto
a influência da cor na obra do escritor: “É claro que a condição de mulato – e
mulato incompreendido e até certo ponto perseguido – influenciou a obra de Lima
Barreto. Mas isso não é tudo. Há nela muito mais do que uma reação meramente
instintiva de um profundo sentimento humano e de uma admirável compreensão do
fenômeno social.”
Luiz
Ricardo de Leitão, autor de Lima Barreto, o rebelde imprescindível, Editora
Expressão Cultural, São Paulo, 2006, faz uma interessante comparação entre
Machado de Assis e Lima Barreto, na apresentação de seu livro, e, a certa
altura do texto, faz referência à cor e ao preconceito, pelo fato de que ambos
os escritores eram mulatos; diz Leitão: “No entanto, não deixemos que os
preconceitos turvem a nossa visão: em um país que só reverencia a casa-grande,
os dois mulatos simbolizam em suas raízes a ironia maior da jovem nação, cuja
cultura mais refinada nasce sob o signo da miscigenação. Antonio Francisco
Lisboa, dito o “Aleijadinho”, na plástica; padre José Maurício, na música;
Machado e Lima, na prosa de ficção: todos eles nos revelam que, sem o
sincretismo, as elites de Pindorama não teriam do que se orgulhar no grande
palco do mundo ocidental...”.
Voltemos à obra de Lima. Quando Lima Barreto
publicou Recordações do Escrivão Isaías
Caminha já havia concluído o romance Vida
e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Portanto, poderia ter publicado qualquer um
desses romances, mas deixou este último para mais tarde, preferindo fazer sua
estréia com o primeiro (Recordações do
Escrivão Isaías Caminha), com essa motivação: “Era um tanto cerebrino o
Gonzaga de Sá – diz Lima -, muito calmo e solene. Pouco acessível, portanto.
Mandei as Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, um livro desigual, propositalmente mal feito, brutal, por vezes,
mas sincero sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar, e temo,
não que ele te escandalize, mas que te desagrade. Como contigo, eu terei grande
desgosto que isso aconteça a outro amigo”.
Lima
Barreto prossegue explicando o por que de sua preferência pelo Recordações do Escrivão Isaías Caminha,
para sua estreia como romancista: “Espero que esse primeiro movimento, muito
natural seja seguido de um outro de reflexão em que vocês considerem bem que
não foi só o escândalo, o egotismo e a charge que pus ali. Peço que não te
esqueças daqueles versos que pus no alto do primeiro capítulo, quando o comecei
a publicar:
Mon coer profond ressemble à ces voûtes
d'église
Où le moindre bruit s'enfle em une
immense voix,
e então hás de ver que a tela que manchei
tenciona dizer aquilo que os simples fatos não dizem, segundo o nosso Taine, de
modo a esclarecê-los melhor, dar-lhes importância, em virtude do poder da forma
literária, agitá-los porque são importantes para o nosso destino. Querendo
fazer isso e fazer compreender aos outros que há importância na questão que
eles tratam com tanta ligeireza, não me afastei da literatura conforme concebo
e perpetuam os nossos mestres Taine e Brunetièro, mas temo que não tivesse
conseguido bem o escopo e tu hás de me perdoar o desastre pela ousadia e
tentativa”.
Podemos compreender, com o texto supra, que o
escritor não estava interessado na arte pela arte; tampouco em seus artifícios
verbais; ao contrário, a sua literatura tinha um endereço certo, qual seja, ir
ao encontro do público, provocando-o para que este lhe dissesse sobre drama
íntimo de cada um. Lima Barreto queria conhecer todos os sentimentos que
envolvem a sociedade, suas quizilas todas, com o objetivo de analisar esse
fenômeno social. Como ele próprio dizia, buscava “a solidariedade humana, mais
do que nenhuma outra coisa, interessa o destino da humanidade”.
Sobre a má qualidade das edições das obras de
Lima Barreto temos o depoimento do conceituado crítico literário, Francisco de
Assis Barbosa, que escreveu o prefácio para o romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, 7ª edição, Editora
Brasiliense, São Paulo, 1978:
“É bem de ver que Lima Barreto – escreve
Barbosa -, tanto em vida, como depois de morto, por vários fatores, que não vem
a pelo comentar, foi maltratado pelas edições das suas obras. Daí o grande
problema que tínhamos pela frente, apresentar o escritor tal como ele foi, e
não mutilado ou deformado, como vinha sendo, dando azo às críticas injustas,
feitas de boa ou de má fé, pelos que fingem ignorar ou insistem em desconhecer
a mensagem renovadora do autor de Recordações
do Escrivão Isaías Caminha. Ao cabo de um trabalho penoso é nosso dever
reconhecer, com uma ponta de orgulho, não nos termos equivocado na escolha de
nossos colaboradores”.
Os colaboradores, a que se refere Assis
Barbosa, para o plano de publicação das obras de Lima Barreto, cuja coleção
abrange dezessete volumes, são: o filólogo Antônio Houaiss e o professor de
português Manoel Calvalcânti Proença. E, para cada uma das obras que integram a
referida coleção, foi escolhido, por Barbosa alguns dos escritores brasileiros
mais importantes para escrever o respectivo prefácio. Portanto, ficamos muito a
dever ao homem culto que foi Francisco de Assis Barbosa e aos seus ilustres
colaboradores (Houaiss e Proença), bem como aos ilustres escritores que
aceitaram escrever os prefácios para cada uma das obras de Lima Barreto.
Os dezessete volumes, que compõem a referida
coleção das obras de Lima Barreto, são: I - Recordações
do Escrivão Isaías Caminha, prefácio de Francisco de Assis Barbosa; II - Triste Fim de Policarpo Quaresma,
romance, prefácio de M. De Oliveira Lima; III - Numa e Ninfa, romance, prefácio de João Ribeiro; IV - Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá,
romance, prefácio de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde); V - Clara dos Anjos, romance, prefácio de
Sérgio Buarque de Holanda; VI - Histórias
e Sonhos, contos, prefácio de Lúcia Miguel Pereira; VII - Os Bruzundangas, sátira, prefácio de
Osmar Pimentel; VIII - Coisas do Reino de
Jambon, sátira, prefácio de Olívio Montenegro; IX - Bagatelas, artigos, prefácio de Astrogildo Pereira; X - Feiras e Mafuás, artigos e crônicas,
prefácio de Jackson de Figueiredo; XI - Vida
Urbana, artigos e crônicas, prefácio de Antônio Houaiss; XII - Marginália, artigos e crônicas, prefácio
de Agrippino Grieco; XIII – Impressões de
Leitura, crítica literária, prefácio de M. Cavalcanti Proença; XIV - Diário Íntimo, memórias, prefácio de Gilberto
Freire; XV - O Cemitério dos Vivos,
memórias e fragmentos, prefácio de Eugêgio Gomes; XVI - Correspondência, ativa e passiva,
primeiro volume, prefácio de Antônio Noronha Santos; XVII - Correspondência, ativa e passiva,
segundo volume, prefácio de B. Quadros.
REFERÊNCIAS:
LINS, Álvaro. BUARQUE DE
HOLLANDA, Aurélio. Roteiro Literário de
Portugal e do Brasil. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
LEITÃO, Luiz Ricardo. Lima Barreto, o rebelde imprescindível. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2006.
LIMA BARRETO. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Prefácio de Francisco de Assis Barbosa. 7ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.
LIMA BARRETO. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Prefácio de Francisco de Assis Barbosa. 7ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.
* * *
Gostei de ler este teu trabalho sobre um escritor brasileiro que eu desconhecia de todo.
ResponderExcluirObrigado pela partilha. Irei ler algumas das suas obras.
Gostava de comentar mais alguns dos teu trabalhos aqui mas escreves assuntos que estão fora do meu alcance.
Aceita um sincero abraço com votos de um bom ano de 2010.
Olá amigo! Realmente, o preconceito sempre existiu e continua existindo. Lembro-me que em 1950, eu estava com 8 anos, residia em Recife e torcia pelo Náutico, clube em que somente brancos jogavam ou frequentavam a sua sede social. Agora em 2008, escrevi um artigo para um jornal aqui de Natal, sobre o projeto que estipulava determinado número de vagas nas universidades, inclusive, esse artigo está postado no Arte & Emoções com o marcador Preconceito e com o título: "Congresso: berço atual do preconceito".
ResponderExcluirO fato do Lima Barreto ter caído no esquecimento, foi o preconceito sim. Isso ninguém poderá negar.
Bela postagem. Parabéns!
Abraços e ótima semana.
Furtado.
Como é bom visitar um Blog que alguém se preocupa em postar histórias de grandes escritores.
ResponderExcluirParabéns por esse trabalho tão grandioso.
Bjos da JU
Oi Pedro,
ResponderExcluirÉ sempre bom aprender mais um pouco, quando se passa por aqui...
Beijos e obrigada por me presentear com um poema pertinente ao meu post,
Ana Lúcia.
Caro Pedro,
ResponderExcluirDescobri o seu blog por acaso - e coincidentemente estou aqui em Porto Alegre, para participar de alguns eventos.
Parabéns pelo ótimo blog - onde é que se pode encontrar, no mesmo espaço, Rilke, Borges, Eliot, Dostoiévski, Poe e tantos outros luminares?!?!
Também maravilhosa a resenha sobre Lima Barreto - O Triste Fim de Policarpo Quaresma é um dos grandes momentos da literatura brasileira!
Aproveito para convidá-lo a conhecer o blog jazz + bossa + baratos outros:
www.ericocordeiro.blogspot.com
Um fraterno abraço (e quem sabe a gente não se encontra pessoalmente aqui em POA, prá falar de música, letras, direito e outras coisas bacanas)?
Muito bom seu blog, estou seguindo-o!
ResponderExcluirCaso goste do meu também, fique a vontade pra seguí-lo também.
http://loreniitaahh.blogspot.com/
Um abração carioca,
LL
Caro amigo. Com toda a franqueza, não conhecia a obra de Lima Barreto, foi um prazer ter podido acrescentar um pouco mais aos meus conhecimentos da literatura brasileira. Bem haja e um forte abraço.
ResponderExcluirConfesso que o Policarpo, esse ícone entre as personagens da literatura brasileira, só conheço de ouvir falar, ler pequenas resenhas... Vergonha, não é mesmo? Acabei de pô-lo na minha listagem de leituras deste 2010.
ResponderExcluirObrigado por mais esta, Pedro!
abç
Cesar Cruz
Sr.Pedro,
ResponderExcluirParabéns pelo blog e pelo post sobre meu escritor mais querido, Lima Barreto. Desejo sucesso com seu espaço virtual e adianto: ganhou um leitor.
Abraços,
(escrito ao som de Sinatra).
Ilmo Escritor Pedro Luso de Carvalho, muito bom dia e ótimo domingo!
ResponderExcluirA razão do meu comentário é informar que após ler o seu artigo sobre o LIMA, não resisti, copiei os dois primeiros parágrafos e publiquei aqui ... http://letrastaquarenses.blogspot.com.br/2015/05/lima-barreto-talento-e-rebeldia-pedro.html
Abraços colorados !!
Antonio Cabral Filho - Rj
Obrigado, caro Antonio.
ExcluirLogo passarei no seu blog para conhecê-lo.
Sobre os dois parágrafos sobre Lima Barreto, é mais uma contribuição para a divulgação da obra desse mestre da literatura.
Grande abraço.