– PEDRO LUSO DE CARVALHO
DYONELIO
MACHADO nasceu em Quaraí, RS, em 1895, e faleceu em Porto Alegre, em 1985. Foi
médico, escritor, músico e pintor. Passou a ser conhecido como escritor ao
receber o Prêmio Machado de Assis, em 1935, pelo seu romance Os ratos, hoje um dos modernos clássicos
da literatura brasileira. Depois publicou, entre outros: Um pobre homem, O louco de
Cati, Os deuses econômicos, Prodígios, Sol subterrâneo, Desolação,
Passos perdidos, Ele vem do fundão, Endiabrados,
Nuanças.
Segue o
conto Ronda das gotas de Dyonelio Machado (in Rodízio de contos. Org. por Arnaldo Campos, Charles Kiefer e
Laury Maciel. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 46-48):
RONDA DAS GOTAS
-- DYONÉLIO MACHADO
RONDA DAS GOTAS
-- DYONÉLIO MACHADO
A pequenita foi, pé
ante pé, até a porta que abria para o corredor. Estendeu um olhar longo para o
fundo da casa, para se certificar de que não era observada, e voltou,
tranquila, para o seu lugar, na sala da frente.
Subiu de novo à
janela.
Era num primeiro
andar.
Chovia.
Alice divertia-se
vendo a chuva cair.
Bem à altura dos seus
olhos, uns pingos grossos, redondos, deslizavam, suspensos dos cabos
eletrolíticos que margeavam a rua num e noutro lado.
Vinham uns atrás dos
outros. Aproveitavam um declive do fio, doce e curvo como um seio, e
precipitavam-se, velozes, como se brincassem “de pegar”.
Alguns, pesados,
destacavam-se, como grandes pérolas hialinas, antes de atingir o seu fim – que
era a junção do arame que, à altura da sua porta, distribuía a energia elétrica
à casa.
Os mais valentes,
porém, triunfavam daquela distância. Às vezes, mesmo, dois ou três, retardados
pelo aclive que agora o fio apresentava e que era necessário vencer, fundiam-se
num só, que brilhava um momento, enorme, majestoso, e ruía, depois,
pesadamente.
Como se vê, era
assaz animado o espetáculo.
Ordinariamente, nem
bem acompanhava até o termo do seu percurso essa gota, já outras muitas, cinco
ou seis – uma multidão – despontavam à sua esquerda, pelo outro lado da janela
– cujo retângulo cinzento, naquele dia triste de chuva, limitava o seu mundo visual.
Alice batia
festivamente as palmas, quando os seus pingos chegavam ao fim de sua jornada e
ficavam ainda luzindo, antes de se diluírem, aprisionados na malha tosca que a
extremidade do fio de ligação fazia, ao enroscar-se no cabo principal.
Alice interessava-se
particularmente pela sorte das pequeninas gotas, quando estas se precipitavam
no espaço. A princípio era um simples intumescimento claro da massa escura do
condutor. Depois, com a chegada de outras, maiores, iam crescendo,
definindo-se, até tomar o vulto das demais e seguir-lhes o mesmo caminho, como
quem diz o mesmo destino, despencando-se, finalmente, em meio do trajeto ou no
seu fim, mas sempre despencando-se.
Para as crianças,
como em geral para os simples e sábios, tudo tem vida. Para as crianças,
especialmente, tudo possui uma expressão humana.
Para Alice, pois, os
pingos menores eram crianças, como ela, e os pingos maiores – adultos – os
pais. Certamente eram pais extremosos aquelas gotas grossas que vinham tomar
nos seus braços fortes as gotas pequeninas, como que abandonadas, coitaditas,
no meio da estrada fria...
Ao passar pela sua
frente, Alice vaticinava, secretamente, o futuro de cada gota: esta chegará...
esta não chegará... Dir-se-ia uma pequenina bruxa, postada no caminho da vida,
a profetizar para uma humanidade também pequenina, mas igualmente atingida da
incerteza e inconstância de nosso destino...
A representação
repetia-se. Alice desejá-la-ia mais variada. Já a enfarava, pois.
Tinha, porém, uma
outra curiosidade, agora. Superior ao prazer que lhe dava a passagem
ininterrupta das gotas: era descobrir-lhes a origem!
Onde nasceriam?
Longe dali? Na outra janela? – E Alice curvava tristemente a pequenina fronte
ao peso desse grande mistério, como o homem igualmente, ante o tenebroso
problema da sua própria origem...
Uma esperança,
porém, atravessou-lhe o craniozinho esbraseado! Fez-se-lhe uma luz! Talvez
fosse na casa vizinha! Cada casa possuía certamente as suas gotas, que nasciam
e morriam dentro do espaço que vai de uma à outra! Era lógico! – E Alice da
mesma forma que os homens, corria sofregamente atrás dos enganos da lógica, na
necessidade de engendrar a unidade que não existe no universo, mas que
constitui a única condição da sua explicação humana...
O seu objetivo agora
era temerário. O banquinho sobre que se achava, e que constituíra até aí o seu
posto rudimentar de observação, seria totalmente ineficaz para a acompanhar na
arrojada empresa. Afastou-se, então, como quem ia munir-se de um aparelho mais
adiantado. Voltou, pouco depois, com uma cadeira, enorme, de braços.
Fez a substituição e
subiu.
Estendeu o olhar,
com metade do corpo para fora.
Ela julgara que iria
surpreender as gotas na sua origem definida e palpável: uma mão potente,
depositando-as, facilmente, sobre o fio, já feitas, com vida e aquela sua
forma, original e caprichosa.
Decepção!... Sobre o
cabo, nada de extraordinário. As pequenas gotas de água pareciam surgir por si,
no meio dum mistério, ao mesmo tempo simples e profundo, assegurando-se, bem
assim, pelo esforço próprio, o estado esferoidal que as distinguia...
Igualmente, não
tinham lugar certo para nascer. O fio, molhado em toda a sua extensão, parecia
constituir a grande matriz, indiferentes das gotas da chuva, que se desatavam
na sua superfície, como pequenos botões de flores, desabrochando ao longo dum
galho nu.
E Alice pensou então
que, de todo o espetáculo, desde a origem do pingo d’água, até o seu fim, só o
que havia de claro e de certo – era a sua mensagem através do retângulo
cinzento da janela. Era o seu fugitivo instante de vida...
– Minha filha!
Dantas! Acudam!
Alice procurava
voltar-se. Só então é que viu o perigo em que se encontrava, prestes também a
desabar no abismo da rua.
O homem correu.
Deitou-lhe um braço enérgico e amparador. Retirou-a muito pálida da janela,
onde ela, pela primeira vez, se debruçara sobre o mistério da vida e da
morte...
– Minha querida
filha!... Que susto tu deste na tua mãe...
* * *
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Pedro