– PEDRO LUSO DE CARVALHO
LYGIA
FAGUNDES TELLES (Lygia de Azevedo Fagundes ) nasceu em São Paulo, SP, em 19 de
abril de 1923. Morou em várias cidades do interior, onde seu pai foi delegado e
promotor público. Na capital, fez o curso secundário e formou-se em Educação
Física e em Direito. Ainda estudante, passou a colaborar com inúmeros jornais e
revistas. Pertence ao Corpo Deliberativo da Cultura do Estado de São Paulo.
A obra
da escritora vem sendo recebida, ao longo dos anos, pelos leitores e pela
crítica com entusiasmo e com o respeito, que efetivamente merece, tanto que
muitos foram os prêmios de alta significação que recebeu. Começou a escrever
muito cedo; o livro de contos Porão e
Sobrado foi escrito quando contava com quinze anos.
Dentre
as obras mais importantes de Lygia Fagundes Telles, destacamos (contos) : Praia Viva, 1944; O Cacto Vermelho, 1949 (“Prêmio Afonso Arinos”, da Academia
Brasileira de Letras); Histórias do
Desencontro, 1958 (“Prêmio Instituto Nacional do Livro”); Histórias Escolhidas, 1961; O Jardim Selvagem, 1965 (Premio Jabuti);
Antes do Baile Verde, 1970;
(romances) Cidade de Pedra, 1954; As
meninas, 1973 (Premio da Associação Paulista de Críticos de Arte e Premio
Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras). Lygia Fagundes Telles foi
premiada no I Concurso Nacional de Contos do Paraná, 1968, e recebeu o Prêmio
Guimarães Rosa da Fundepar pelo conjunto de obras, em 1970.
É membro
da Academia Paulista de Letras (1982) da Academia Brasileira de Letras (1985) e
da Academia das Ciências de Lisboa (1987).
Em 1973,
com o conto A estrutura da bolha de
sabão, de Lygia Fagundes Telles
participou da coletânea Os Melhores
Contos Brasileiros de 1973, publicado pela Editora Globo - Porto Alegre,
1974, p. 113-119. Segue a transcrição desse conto:
A ESTRUTURA DA BOLHA DE SABÃO
Lygia Fagundes Telles
Era o
que ele estudava. “A estrutura, quer dizer a estrutura” - ele repetia e abria a
mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto
impreciso, porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida,
nem realidade nem sonho. Película e oco. “A estrutura da bolha de sabão,
compreende?” Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal
de minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais
tenros que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor
calculado, porque, se me afobava, o sopro desencadeava o processo e um delírio
de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma
descendo pelo queixo. Molhando o peito. Então eu jogava longe o canudo e
caneca. Para recomeçar no dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura?
“A estrutura” - ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga
parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô a paciência. A
paixão.
No
escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me
espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão
distendida imitando libélula na superfície da água, mas sem se comprometer com
o fundo, divagações à flor da pele, ô, amor de ritual sem sangue. Sem grito.
Amor de transparência e membranas, condenado à ruptura.
Ainda
fechei a janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia tudo ela
avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não enxergava. Deixou um
círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei quando ele tomou a mulher pelo
braço e perguntou: “Vocês já se conheciam?” Sabia muito bem que nunca tínhamos
nos visto mas gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos
num bar e seus olhos de egípcia se retraíam, apertados. A fumaça, pensei.
Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e
assim ficaram. A boca polpuda também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa,
pensei. Artificiosamente sensual, à-toa. Mas como é que um homem como ele, um
físico que estudava a estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim.
Mistérios, eu disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de ideias,
peças soltas dum jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe.
Convidaram-me
e sentei, os joelhos de ambos encostados nos meus, a mesa pequena enfeixando
copos e hálitos. Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo, ele
podia estudar a estrutura do gelo, não era mais fácil? Mas ele queria fazer
perguntas. Uma antiga amizade? Uma antiga amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos
conhecemos numa praia, onde? Enfim, uma praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi
tomando forma e transbordando espesso como um licor azul-verde, do tom da
pintura dos seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da mesa,
pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio a dor de cabeça: “Estou
com tanta dor de cabeça”, repetiu não sei quantas vezes. Uma dor fulgurante que
começava na nuca e se irradiava até a testa, na altura das sobrancelhas.
Empurrou o copo de uísque. “Fulgurante”. Empurrou para trás a cadeira e antes
que empurrasse a mesa ele pediu a conta. Noutra ocasião a gente poderia se ver,
de acordo? Sim, noutra ocasião, é lógico. Na rua, ele pensou em me beijar de
leve, como sempre, mas ficou desamparado e eu o tranquilizei, está bem,
querido, está tudo bem, entendi. Tomo um taxi, não tem problema, vá depressa,
vá. Quando me voltei, já dobravam a esquina. Que palavras estariam dizendo
enquanto dobravam a esquina? Fingi me interessar pela valise de plástico de
xadrez vermelho, estava diante de uma vitrine de valises. Me vi perplexa no
vidro. Mas como era possível. Choro em casa, resolvi. Em casa telefonei a um
amigo, fomos jantar e ele concluiu que o meu cientista estava felicíssimo.
Felicíssimo,
repeti quando no dia seguinte cedo ele telefonou para explicar. Cortei a
explicação com o felicíssimo e lá do outro lado da linha senti-o sorrir como
uma bolha de sabão sorriria. Realmente, a única coisa inquietante era aquele
ciúme. Mudei logo de assunto com o licoroso pressentimento de que ela ouvia na
extensão, oh, o teatro. A poesia. Então ela desligou.
O
segundo encontro foi numa exposição de pintura. No começo, aquela cordialidade.
A boca pródiga. Ele me puxou para ver um quadro de que tinha gostado muito. Não
ficamos distante dela nem cinco minutos. Quando voltamos, os olhos já estavam
reduzidos aos dois riscos. Passou a mão na nuca. Furtivamente acariciou a
testa. Despedi-me correndo antes da dor fulgurante. Vai virar sinusite, pensei.
A sinusite do ciúme, bom nome para um quadro ou ensaio.
“Ele
está doente, sabia? Aquele cara que estuda bolhas, não é seu amigo?” Em redor,
a massa latejante de gente, música. Calor. Quem é que está doente? Eu
perguntei. Sabia perfeitamente que se tratava dele, mas precisei perguntar de
novo. É preciso perguntar uma, duas vezes para ouvir a mesma resposta, que
aquele cara, aquele que estuda essa frescura da bolha, não era meu amigo? Pois
estava muito doente, quem contou foi a própria mulher, bonita, sem dúvida, mas
um pouco sobre a grossa, fora casada com o primo dum amigo, um industrial meio
nazista que veio para cá com passaporte falso, até a Interpol já estava
avisada, durante a guerra se associou com um tipo que se dizia conde italiano
mas não passava dum contrabandista muito grande. Estendi a mão e agarrei seu
braço porque a ramificação da conversa se alastrava pelas veredas, eu mal podia
vislumbrar o desdobramento da raiz varando por entre pernas, sapatos, croquetes
pisados, palitos, fugia pela escada na descida vertiginosa até a porta da rua,
espera! eu disse. Espera. Mas que é que ele tem? Esse meu amigo. A bandeja de
uísque oscilou perigosamente acima do nível das nossas cabeças. Os copos
tilintaram na inclinação para a direita, para a esquerda, deslizando num só
bloco na dança dum convés na tempestade. O que ele tinha? O homem bebeu metade
do copo antes de responder: não sabia os detalhes e nem se interessava em
saber, afinal, a única coisa gozada era um cara estudar a estrutura da bolha,
ora que idéia! Tirei-lhe o copo e bebi devagar o resto do uísque com o cubo de
gelo colado ao meu lábio, queimando. Não ele, meu Deus. Não ele, eu repeti.
Embora grave, curiosamente minha voz varou todas as camadas de barulho como a
ponta agudíssima varara todas as camadas do meu peito até tocar no fundo, lá no
fundo onde as pontas todas acabam por dar, que nome tinha? Esse fundo,
perguntei e fiquei sorrindo para o homem e seu espanto. Expliquei-me que era o
jogo que eu costumava jogar com ele, com esse meu amigo, o físico. O
infortunante riu. “Juro que nunca pensei que fosse encontrar no mundo um cara
que estudasse um troço desses”, resmungou ele voltando-se rápido para apanhar
mais dois copos na bandeja, ô, tão longe ia a bandeja e tudo o mais, fazia
quanto tempo? “Me diga uma coisa, vocês não viveram juntos?” - lembrou-se o
homem de perguntar. Peguei no ar o copo borrifando na tormenta. Estava nua na
praia. Mais ou menos, respondi.
Mais ou
menos, eu disse ao motorista que perguntou se eu sabia onde ficava essa rua.
Tinha pensado em pedir notícias por telefone, mas a extensão me travou. E agora
ela abria a porta e o sorriso. Contente de me ver? A mim?! Elogiou minha bolsa.
Meu penteado despenteado. Nenhum sinal da sinusite. Mas daqui a pouco vai
começar. Fulgurante.
“Foi
mesmo um grande susto,” ela disse. “Mas passou, ele está ótimo ou quase”,
acrescentou levantando a voz. Do quarto ele poderia nos ouvir se quisesse. Não
perguntei nada.
A casa.
Aparentemente, não mudara, mas, reparando melhor, tinha menos livros. Mais
cheiros: flores de perfume ativo no vaso, óleos perfumados nos móveis. E seu
próprio perfume. Objetos frívolos – os múltiplos – substittuindo em profusão os
únicos, aqueles que ficavam obscuros nas antigas prateleiras da estante.
Examinei-a enquanto me mostrava um tapete que tecera nos dias em que ele ficou
no hospital. E a fulgurante? Os olhos continuavam bem abertos, a boca
descontraída. Ainda não.
“Você poderia
ter se levantado, hem, amor? Mas é um preguiçoso”, disse ela quando entramos no
quarto. E começou a contar muito animada a história dum ladrão que entrara pelo
porão da casa ao lado, “a casa da mãezinha”, acrescentou afagando ligeiramente
os pés dele debaixo da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos
berros, pedindo socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão e na
véspera a mãezinha armara uma enorme ratoeira para pegar o rei de todos,
lembra, amor?
O amor
estava de chambre verde, recostado na cama cheia de almofadas. As mãos
branquíssimas descansando entrelaçadas na altura do peito. Ao lado, um livro
aberto e cujo título deixei para ler depois e não fiquei sabendo. Ele mostrou
interesse pelo caso do ladrão, de mim e dela. De quando em quando me olhava
interrogativo, sugerindo lembranças, mas eu sabia que era por delicadeza,
sempre foi delicadíssimo. Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu
chambre largo demais. Era devido àquelas dobras todas que fiquei com a impressão
de que emagrecera? Duas vezes enxugou o queixo úmido, transpirava. Enfim, fazia
calor.
Comecei
a sentir falta de alguma coisa, era do cigarro? Acendi um e ainda a sensação
aflitiva de que alguma coisa faltava, mas o que estava errado ali? Na hora da
pílula lilás ela foi buscar o copo d’água e então ele me olhou lá do seu mundo
de estruturas. Bolhas. Por um instante relaxei completamente: “Não sei onde
está mas sei que não está”, eu disse, e ele perguntou: “Jogar?” Rimos um para o
outro.
“Engole,
amor, engole” - pediu ela segurando-lhe a cabeça. E voltou-se para mim: -
“Preciso ir aqui na casa da mãezinha e minha empregada está fora, você se
importa em ficar mais um pouco? Não demoro muito, a casa é ao lado”,
acrescentou. Ofereceu-me uísque, não queria mesmo? Se quisesse estava tudo na
copa, uísque, gelo, ficasse à vontade. Telefone tocando será que eu podia?...
Saiu e
fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando, ô Deus. Agora
eu sabia que ele ia morrer.
* * *
interesante blog
ResponderExcluirObrigado, Jayja, pela visita.
Excluirlleno de cultura felicitaciones!
ResponderExcluirVolte sempre, Jayja.
ExcluirAbraços.