– PEDRO LUSO DE CARVALHO
CYRO
MARTINS (1908 - 1995) enriqueceu sua prosa com a experiência que colheu na sua
cidade natal, Quaraí, nas suas próprias vivências, desde muito cedo, antes de
mudar-se para Porto Alegre. Esse conhecimento do homem do campo foi a base para
a sua ficção. O escritor ainda pode contar com a sua vivência na área médica,
em especial na psiquiatria e na psicanálise.
A soma
desses dois fatores – esse conhecimento da vida campeira e essa experiência
profissional com a psicanálise – facilitou-lhe a construção de personagens
fortes e, por assim dizer, reais. Na sua ficção – romance e conto – temos essa
constatação. E temos histórias contadas num texto enxuto, que não permite
demasias de estilo.
O conto O Negro Jacinto, que segue, integra o
livro de contos regionais Campo fora,
estreia de Cyro Martins, em 1934, e que foi muito valorizado pelos críticos,
pela abordagem social do escritor e pelo seu modo de narrar. (In Martins, Cyro. Campo fora. 5ª ed. Porto
Alegre: Editora Movimento, 1991, p. 61-62):
O NEGRO JACINTO
(CYRO MARTINS)
Debaixo
dum carretão velho de cabeçalho quebrado e rodado sem chapa, deitado, a cabeça
descansando sobre as mãos em cruz, o Coleira revivia antigas lembranças. O
olhar vesgo e gris, solto à toa no campo raso, era fugitivo, ambíguo, disperso
como numa amarga meditação. Nunca andara assim, debalde, espichado no chão,
vagabundo e sonolento. Nunca. Só agora que estava velho e caduco, que não
prestava para mais nada, que vivia essa vida inútil de tédio e preguiça. Mas
não gostava disso. Sempre preferiu a vida ágil e gaudéria que levava noutros
tempos, quando era novo e tinha força. Todos o animavam então. E ele bem
merecia, pois não havia campereada que não ajudasse. Ia em qualquer volteada, corresse risco ou
não, alegre, cabeça erguida, faro ativo, e o arco torcido para cima. Quantas
vezes escapou por um triz de ficar enfiado nas guampas dos touros.
E agora
tudo mudado. Decrépito, as juntas emperradas, de há muito sem aquela atitude
arrogante de antigamente, judiado e debochado por todos. E que desconsolada sua
melancolia de cachorro decadente, nas manhãs barulhentas de rodeio e sol, ao
ver a cachorrada sair em grupo, embolada num novelo turbulento, pulando no
estribo do patrão e ganindo excitada de alegria! Farejava o vento agreste,
entesava as pernas magras, e arremetia leve como se mudasse instantaneamente noutro, no que fora. E a
poucos passos ficava exausto e vencido, parado, numa tremura. A custo sentava
sobre as pernas traseiras, erguia bem alto a cabeça, e uivava longamente,
angustiando com a sua lástima a ventura da manhã.
O galpão
ficou só. Dia frio. E feias as campanhas, pardas de garoa. O choro do vento nos
oitões e a zoada do arvoredo despilchado de inverno enchiam o vazio do sol e da
vida. O Coleira se arrastou até a porta. Abriu os olhos cansados. Ninguém!
Caminhou trôpego e ansioso para a beira do fogão, apressado por matar aquela
saudade. Arrodeou os tições que ardiam quietos e se enroscou na cinza morna. Já
lhe era quase estranho aquele calor. Também, há quanto tempo! Ninguém o queria
mais ali, atulhando caminho, traste sem préstimo!
Lá fora
caía neve. Mas na beira do fogão estava tão quente! Feliz, esquecido que tinha
penado, foi adormecendo devagarinho. E sonhou. Foi um sonho cheio de aventuras
e perigos do tempo desperdiçado de cachorro novo. Sonhou com as caçadas das
noites de verão. Quanto bicho tirou da toca! E quantos outros correu campo fora
até pegar! E logo o sonho mudou para um dia de solaço. Andava campereando com a
peonada.
Numa
trepada de coxilha, um lagarto verde e enorme, escarrapachado sobre a laje.
Negaceou escondido entre os miolos, como pisando em espinhos, alevianado que
andava. Voou uma perdiz de dentro de uma
moita, riscado linha direta no ar. Ele seguiu com raiva o voo trepidante que
podia espantar a caça. Mas logo o rufo
silenciou. A perdiz se degolou na corda mais de cima do aramado. O gorgon ficou
vibrando um assobio. O lagarto inchou de brabo. E ele pulou ágil na presa. Mas
levou tamanho lepte nas costelas, que saiu quietinho, fino, para trás. Refeita
a coragem, carregou com mais gana agora. A barriga lisa do lagarto amarelou
para cima, e o novo guascaço doeu mais ainda. Encolheu-se e ganiu de dor.
Acordou.
Uma gargalhada debochada e gaiata estrondou no galpão. Na frente dele, o negro
Jacinto, beiçudo, olhos rasgados, chiripá de lona, com um relho trançado e
grosso dependurado na mão monstruosa de tamanho, e a dentuça branqueando na
bocarra escancarada.
* * *
Há pessoas que são realmente iluminadas e com a rica experiência de VIDA é capaz de transformar o dia-a-dia em grandes contos, levando novos olhares a quem lê.
ResponderExcluirSensibilidade é coisa para poucos.
Um abraço, Pedro!
É verdade, Malu, a vivência é, muitas vezes, a matéria-prima para a criação literária.E, se à vivência somar-se a sensibilidade e o talento, tem-se como resultado a obra de arte.
ExcluirUm abraço, Malu!