por Pedro Luso de Carvalho
Nesta semana, estive mexendo nos meus livros à procura de Contos Pesados, de Monteiro Lobato, escrito em 1940. Para minha surpresa, ao lado de Contos Pesados deparei-me com Críticas e Outras Notas, vol. 18, das Obras Completas de Monteiro Lobato, com publicação da Editora Brasiliense, São Paulo, 1965. Passando os olhos pelo índice, ali estava o comentário sobre Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá; lembrei-me que depois que li a crítica de Lobato, sobre esse livro (em Críticas e Outras Notas), lá pela sugunda metade dos anos 60, quando ainda freqüentava os bancos universitários, foi que passei a interessar-me pela obra de Lima Barreto.
Então, falemos um pouco do que encontrei em Críticas e Outras Notas: no ano de 1919, Monteiro Lobato edita, em sua editora, a obra de Lima barreto: Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Tal edição resulta em fracasso. Lobato coloca a culpa pelo mau êxito editorial no título do romance, como ele próprio diz a Barreto, em carta que lhe escreve: “Teu livro sai pouco, sabe por que? O título! O título não é psicologicamente comercial. O bom título é metade do negócio. Ao ler o título de teu romance toda gente supõe que é a biografia de... ilustre desconhecido”. (Carta de 23/111919 – Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, em Os cadernos de Cultura, organizado por Edgar Cavalheiro.)
Sobre esse romance de Lima Barreto, Monteiro Lobato escreve um artigo com o título Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, publicado em São Paulo pela Revista do Brasil', nº 39, em março de 1919, pág. 352, como segue:
“De Lima Barreto não é exagero dizer que lançou entre nós uma fórmula nova de romance. O romance de crítica social sem doutrinarismo dogmático. Surgiu com as Memórias do Escrivão Isaías Caminha de que pouco falou a imprensa na pessoa de eminentes jornalistas postos em cena com inaudita irreverência. Publicou depois o Triste Fim de Policarpo Quaresma, e está na memória de todos a impressão profunda, algo desnorteadora, desse magnífico estudo de caracteres e costumes, onde se escalpam cruamente umas tantas idéias correntes, transformadas em tabu pela ausência de crítica sincera.”
“Em seguida – escreve Monteiro Lobato -, tomado ao rodapé da Noite, tivemos Numa e Ninfa, mais fracos que os anteriores, e visivelmente prejudicado pelo apressado da composição. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá vem agora completar uma série suficiente para colocar o autor em plano de alto destaque na plêiade de nosos romancistas. Revela-se neste a mesma qualidade primacial obaservada nos anteriores: forte poder de empolgar o leitor, da primeira à última linha. Ninguém interrompe por fastio, a leitura dos seus livros – esse mortal fastio que nos leva a 'admirar' tantos autores inibindo-nos de os ler. Vida e Morte é um romance pouco romanceado. Nenhuma tragédia dentro; apenas o entaperar-se progressivo dum espírito superior enleado pelo cipó mortífero da burocracia. Gonzaga de Sa vê-se um dia entalado nas engrenagens desse Moloque transformador de homens em bonecos de engoço”.
“Reage, mentalmente - prossegue Lobato - apenas: é muito fraco para sacudir os músculos e desempegar-se da massa viscosa; a iniciativa lhe morre, a resignação sobrevem. Gonzaga, vencido, deixa-se boiar como um ex-homem à tona da lagoa de águas verdes, sofrendo em silêncio o contato doloroso dos gelatinosos colegas. Vinga-se confabulando com o interlocutor que o acom,panha através do livro inteiro. Sua vingança, vingança calma de velho filósofo, resume em dissertar sobre homens e coisas com ática superioridade. É um Mr. Bergeret carioca, irônico e cético, paradoxal e compeensivo, por cujo civo de análise se coam todos os aspectos da velha cidade. O Rio está inteiro nesse livro, nas paisagens naturais, na paisagem urbana, na população caleidoscópica – salada de raças em que o mestiço esbarra com loiras mulheres gaulesas e inconciente missão civilizatória. Sucedem-se os flagrantes, os instantâneos cinematográficos onde a alma das gentes e das coisas é apanhada ao vivo e escorchada às vezes o mais íntimo dos recessos."
“Nos livros cariocas – conclui Lobato – de Machado de Assis o leitor entrevê desvãos do Rio. Machado, criador de almas, raro curava da paisagem urbana. Em Lima Barreto conjugam-se equilibradamente as duas coisas: o desenho dos tipos ea a pintura do cenário; por isso dá ele, melhor que ninguém, a sensação carioca. É um revoltado em período manso de revolta. Em vez de cólera, ironia; em vez de diatribe, essa nonchalanche filosofante de quem vê a vida sentado num café e amolentado por um dia de calor...”
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