– PEDRO LUSO
DE CARVALHO
EDGAR ALLAN POE nasceu a 19 de janeiro de 1809, em Boston, Estados
Unidos da América, e faleceu a 7 de outubro de 1849, em Baltimore, EUA, aos 40 anos de idade. Foi
poeta, contista e ensaísta. Mistério e elementos macabros que impregnam suas
histórias deram ao estilo gótico americano uma outra face. William Carlos
Williams dizia que Poe foi o primeiro autor verdadeiramente americano.
Entretanto, o reconhecimento, como grande contista, poeta e ensaísta,
deu-se primeiramente na França, que teve como divulgador de sua obra e o
primeiro a traduzi-la para o francês, o conceituado poeta Charles Baudelaire
(1821-1867). Mallarmé, um dos expoentes do Simbolismo francês, continuou a
fazer a divulgação das histórias e poesias de Poe, que se viu consagrado nos
dois anos que antecederam sua morte.
A prosa de Edgar Allan Poe, com seus contos, impregnados de elementos
misteriosos e macabros, mudou a literatura dos Estados Unidos, até então presa
às convenções ditadas pela moral e pela religião. Poe influenciou escritores
importantes, dentre eles, Jorge Luis Borges. No nível de Poe estão, além de Borges,
diz André Maurois: Kafka, Wells e Chesterton. Maurois afirma que "Poe
escreveu contos perfeitos de horror fantástico e inventou a narração policial”.
O conto O Duc de L'Omelete,
que segue, de Edgar Allan Poe,
integra o livro Antologia de Contos (In Edgar Allan Poe. Antologia de Contos. Tradução de Brenno Silveira. Rio de Janeiro:
1959, p. 179-182):
O DUC DE L'OMELETTE
– EDGAR ALLAN POE
Kats foi vítima de uma crítica. Quem morreu por causa de
"Andromache"? (1) Almas ignóbeis! De L'Omelette pereceu devido a uma
hortulana. (2) L'histoire en est brève.
Valei-me Espírito de Apício!
O pequeno vagabundo alado, enamorado, lânguido, indolente, foi
transportado numa gaiola dourada de seu lar distante, no Peru, para a 'Chaussée
D'Antin'. De sua propriedade real, La
Bellissima, o afortunado pássaro foi levado, por seis pares do império, ao
Duc De L'Omelette.
Aquela noite, o duque devia cear sozinho. Na intimidade de seu gabinete,
recostou-se languidamente na otomana pela qual sacrificara sua lealdade ao rei, fazendo um lance maior que o do
soberano – aquela notável otomana do Cadêt.
Mergulha o rosto na almofada. Soam horas no relógio. Incapaz de refrear
seus sentimentos, Sua Excelência mete na boca uma azeitona. Nesse momento, a
porta abre-se delicadamente ao som da suave música, e eis que o mais delicado
dos pássaros surge ante os olhos do mais apaixonado dos homens! Mas que
consternação inexprimível é essa que então ensombrece a fisionomia do duque? Horreur!... chien!...Baptiste!...l'oiseau!...
ah, bom Dieu... cet l'oiseau modeste que tu as désabillé de ses plumes, et que
tu as servi sans papier! Não preciso dizer mais: o duque expirou num
paroxismo de náusea.
* * *
– Ah! Ah! Ah!, riu Sua excelência, três dias depois de sua morte.
– Ih!, ih!, ih!, fez o Diabo, baixinho, adotando um ar de hauteur.
– Certamente, o senhor não está falando a sério, retorquiu De
L'Omelette. Eu pequei, c'est wrai, mas meu bom senhor, pense bem!... Não creio
que seja sua intenção por em prática essas... essas ameaças bárbaras.
– Não, hem? Exclamou o Diabo. Vamos, meu senhor, dispa-se!
– Despir-me? Ora essa!... Não, senhor, não o farei. Quem é o senhor,
diga-me, para fazer com que eu, Duc De L'Omelette, Príncipe de Foie-Gras, já maior
de idade, autor da “Mazurkiad” e membro da Academia, deva depojar-me, a seu
pedido, dos mais suaves calções jamais feitos por Bourdon, do mais elegante
robe-de-cambre jamais confeccionado por Rombêrt... isso sem me referir ao
trabalho que me daria descalçar as luvas e tirar os papelotes de meus cabelos?
– Quem sou eu?... Ah, é verdade! Sou Belzebu, Príncipe das Moscas. Acabo
de retirá-lo de um ataúde de jacarandá tauxiado de marfim. O senhor estava
curiosamente perfumado e rotulado, como uma mercadoria a ser despachada. Foi
Belial quem o mandou – o meu Inspetor de Cemitérios. Os calções que, segundo
diz, foram feitos por Bourdon, são, com efeito, excelentes, e o seu robe-de-cambre uma mortalha bastante ampla.
– Senhor! Exclamou o duque. Não consinto que me insultem impunemente! Na
primeira oportunidade vingar-me-ei dessa ofensa!... O senhor receberá notícias
minhas! Entrementes, 'au revoir!'
Com uma curvatura, o duque ia-se afastando da presença do Satanás,
quando seus passos foram interceptados por um par do reino, que o troxe de
volta. Aí, então, Sua Excelência esfregou os olhos, bocejou, deu de ombros e
refletiu. Satisfeito com a sua identidade, lançou o olhar em torno.
O apartamento era soberbo. Mesmo De L'Omelette não poude deixar de
considerá-lo bien comme il faut. Não se tratava apenas do seu comprimento ou de
sua largura, mas de sua altura!... Ah, esta era espantosa!... Não havia,
certamente, teto, mas uma turbilhonante massa de nuvens cor de fogo. Ao olhar
para cima, Sua Excelência sentiu uma vertigem. Pendendo do alto, havia uma
corrente de metal desconhecido e cor de sangue, cuja extremidade superior se
perdia, como a cidade de Boston, parmi
les nues. Em sua extremidade inferior, oscilava uma grande luz. O duque
sabia que era um rubi, mas irradiava um
brilho tão intenso, tão fixo, tão terrível, como a Pérsia jamais adorara... como Gheber jamais
imaginara... como um mulçumano jamais sonhara quando, embriagado de ópio,
cambaleava para um leito de papoulas, as costas voltadas para as flores e a face
para o deus Apolo. O duque murmurou uma blasfêmia, de decidida aprovação.
Os cantos do aposento eram cercados de nichos. Três deles continham
estátuas de proporções gigantescas. Sua
beleza era grega, sua deformidade egípcia, seu tout ensemble, francês. No quarto nicho a estátua estava velada, e
não era colossal. Mas via-se um tornozelo delicado e um pé calçado com
sandália. De L'Omelette levou a mão ao coração, fechou os olhos, ergueu-os e,
enrubescendo, deparou com o Príncipe das Trevas.
Mas as pinturas! Krupis! Astarte! Astoreth! E Rafael as contemplara! Sim, Rafael estivera ali,
pois não fora ele quem pintou o----? E não fora ele condenado por isso? As
pinturas!... oh, as pinturas! Que suntuosidade! Que amor! Quem é que,
contemplando aquelas belezas proibidas, teria olhos para os delicados adornos
das douradas molduras que pontilhavam, como estrelas, os muros de jacintos e de
pórfiro?
O duque, porém, sente o coração desfalecer no peito. Contudo, não se
acha, como se poderia supor, perturbado com aquela magnificiência, nem tem a
respiração suspensa devido a todos aqueles inumeráveis incensórios. C'est vrais que de toutes ces choses il a
pensé beaucoup... mas, na verdade, o
Duc De L'Omelette está paralisado
de terror: em meio da sombria paisagem descortinada através da única janela que
se achava aberta, eis que divisa os clarões da mais medonha de todas as
fogueiras!
Le pauvre Duc! O duque não poude deixar de imaginar as magníficas, as
voluptuosas, as incessantes melodias que penetravam no salão, depois de
filtradas e transmudadas pela alquimia das vidraças encantadas, eram de
lamentos e os uivos desesperados dos condenados! E ali, também, sobre aquela
otomana, quem poderia ele ser?... ele, o petit-maître
– não, uma Deidade – sentado, imóvel, como se talhado em mármore, 'et qui
sourit', com o seu pálido rosto, si
amèrement ?
Mais il faut agir, isto é, um
francês jamais fraqueja de todo. Ademais, Sua Excelência detestava
cenas... De L'Omelette recobra sua
personalidade. Havia alguns floretes sobre a mesa... E o duque aprendera
esgrima com B-; il avait tué ses six
hommes. Ora, assim sendo, il peut s'échapper. Examina os dois floretes e,
com graça inimitável, concede a escolha ao Príncipe das Trevas. Horreur! Sua
Alteza não sabe esguimir!
Mais il joue!... Que lembrança feliz!
Sua Excelência, porém, sempre tivera ótima memória. “Depenara” no jogo o
“Diable” do Abade Gualtier. Consta-se, a respeito, que le Diable n'ose pas refuser
un jeu d'écarté.
E as probabilidades... as probalidades? Péssimas, sem dúvida – mas não
piores do que a situação em que se encontrava o duque. Além disso, não era ele o senhor do segredo?
Acaso não tirara a pele de Pére Le Brun?
Não era sócio do “Club Vingt-un”? Si je
perds – pensou – je serai deux fois
perdu... estarei duplamente perdido... voilà
tout! (Aqui, Sua Excelência deu de ombros.) Si je gagne, je reviendrai a
mes ortolans... Que les cartes soient
préparées!
Sua Excelência revelava, em sua atitude, o máximo cuidado, a máxima
atenção; Sua Alteza, a máxima desconfiança. Um espectador teria pensado em
Francisco e Carlos. Sua Excelência pensava em seu jogo. Sua Alteza não pensava:
embaralhava as cartas. O duque cortou.
São dadas as cartas. O trunfo é virado... É... é... o rei! Não... é a
rainha. Sua Alteza, o Príncipe das Trevas, lançou uma imprecação ante suas
vestes masculinas. De L'Omelette levou a mão ao coração.
Jogam. O duque enumera as cartas. Sua Alteza pesadamente, faz o mesmo,
enquanto toma vinho. O duque tira furtivamente uma carta.
– C'est à faire, diz Sua
Alteza, cortando.
Sua Excelência faz uma curvatura, dá as cartas e levanta-se da mesa en présentant le Roi.
Sua Alteza mostra-se contrariado.
Se Alexandre não fosse Alexandre, teria gostado de ser Diógenes – e o
duque assegurou ao seu adversário, ao partir, que s'il n'eût pas De L'Omelette
il n'aurait point d'objection
d'etre le Diable.
* * *
1) " The Andromache" – Monfleury. O autor do 'Parnasse
Reformé' faz com que ele fale, no inferno: 'L'homme donc qui voudrait savoir ce
dont je suis mort, qu'il ne demande pas s'il fut de fièvre ou de podrage ou
d'autre chose, mais qu'il entende que ce
fut de “L'Andromaque'.
2) “ hortulana” - Pássaro europeu, 'Embetiza hortulana'. - N.
do T.
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Pedro