– PEDRO LUSO DE CARVALHO
LIMA BARRETO (1881-1922) é um dos nomes mais importantes da literatura brasileira. Como romancista,
destinge-se pelo talento e honestidade colocados em suas obras, dentre outras, Recordações do Escrivão Isaías Caminha
(1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma
(1915), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de
Sá (1919). O escritor é, sem dúvida, merecedor do respeito que a crítica
literária dispensa à sua obra.
Depois das publicações póstumas de Os
Bruzundangas (1922), Bagatelas
(1923), inexplicavelmente, Lima Barreto caiu no esquecimento. Em 1930, um
pequeno grupo de amigos tenta chamar a atenção para a obra do escritor. A
imprensa acompanhou o movimento; Agrippino Grieco escreve o primeiro artigo
para reabilitar o escritor, tratando-o como “o maior e o mais brasileiro de
nossos romancistas”.
Francisco de Assis Barbosa posiciona-se quanto a influência da cor na
obra do escritor: “É claro que a condição de mulato – e mulato incompreendido e
até certo ponto perseguido – influenciou a obra de Lima Barreto. Mas isso não é
tudo. Há nela muito mais do que uma reação meramente instintiva de um profundo
sentimento humano e de uma admirável compreensão do fenômeno social.”
Francisco de Assis Barbosa incumbiu-se de selecionar os melhores contos de Lima Barreto. A
Global Editora imprimiu a 5ª edição, em 2000, desse livro, composto por
quatorze contos. É dessa edição, que escolhemos, para esta postagem, o conto
que segue, intitulado Sua Excelência (In Barreto, Lima. Os melhores contos de Lima Barreto / Seleção de Francisco de Assis
Barbosa. 5ª ed. São Paulo: Global, 2000, p. 163-165):
SUA EXCELÊNCIA
(Lima Barreto)
O ministro saiu do baile da embaixada, embarcando logo no carro. Desde
duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu
pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os
pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no coupé depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu.
Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor,
vaidade.
Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco;
estava certo de suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa
atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada
menos que o sinal da convicção de ser ele o resumo do país, a encarnação dos
seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos
desejo dos ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente,
haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e
unicamente, seria capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes
dele impunham...
E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita
em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer, Lembrou-se do
seu discurso de ainda agora:
“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos”...
Que maravilha! Tinha algo de filosófico, de transcendente. E sucesso
daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:
“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon,
Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam
que as leis devem se basear nos costumes”...
O olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar do leader da oposição – foi o mais seguro
penhor do efeito da frase...
E quando terminou! Oh!
“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele:
reformemos!”
A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse
final foi recebido.
O auditório delirou. As palavras estrugiram; e, dentro do grande salão
iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.
O carro continuav a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só
traço de fogo; depois sumiram-se.
O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente.
Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia
contornos, formas, onde eles pousassem.
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora, o
mesmo minuto da sua saída da festa.
Cocheiro, onde vamos?
Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.
Gritou ao cocheiro:
– Onde vamos? Miserável, onde me levas?
Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia
um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as
grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se havia derretido. O leão da
Birmânia, o Dragão da China, o Lingão da Índia estavam ali, entre todas as
outras, intactas.
– Cocheiro, onde me levas?
Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco,
queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel!
– Canalha, para, para, senão caro me pagarás!
O carro voava e o ministro
continuava a vociferar:
– Miserável! Traidor! Para! Para!
Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos
poucos, fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da
carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe
que estava a rir-se.
O calor continuava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar
o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as
calças...
Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, que suas
pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.
Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando
à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra triunfante,
não havia minutos.
Nas proximidades um coupé
estacionava.
Quis verificar ben as coisas circundantes; mas não houve tempo.
Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe
isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as
mesmas magníficas grã-cruzes ...
Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e,
abjetamente, como se até ali não tivesse
feito outra coisa, indagou:
– Vossa Excelência quer o carro?
* * *
Gostei de ler este conto. Penso que o seu blogue é muito importante na área da
ResponderExcluircultura. Na divulgação que faz de grandes escritores que já tendo partido
fisicamente deixaram a sua obra e essa é imortal.
Um abraço fraterno.
Irene Alves
É sempre com alegria que recebo a visita desta amiga de Portugal.
ExcluirObrigado, Irene.
Abraços.