12 de abr. de 2024

[Poesia] EDGAR ALLAN POE / O Corvo


         
          por Pedro Luso de Carvalho



        Escrevi, neste espaço, artigo sobre Edgar Allan Poe e sua Antologia de Contos, e fiz menção à sua poesia, em especial ao seu comovente e imortal poema O Corvo, que Poe escreveu -o inspirado em Vírgínia Clemm, sua prima-irmã, com quem se casou quando ela tinha apenas treze anos de idade; Virgínia faleceu de tuberculose, em conseqüência da pobreza em que vivia o casal.


        No ano de 1847, Poe teve algumas de suas histórias traduzidas para o francês por Charles Baudelaire, que, num trecho do prefácio que fez para a publicação da obra, disse: “Quanto a sua mulher ideal, a sua Titânide, revela-se em diferentes retratos, esparsos nas suas poesias pouco numerosas, retratos, ou antes maneiras de sentir a beleza, que o temperamento do autor aproxima e confunde numa unidade vaga mas sensível, e esse amor insaciável do Belo, que é seu grande título, isto é, a soma de seus títulos à afeição e ao respeito dos poetas”.


        Mallarmé, um dos expoentes do Simbolismo, continuou a fazer a divulgação das histórias e poesias de Poe, que se viu consagrado nos dois anos que antecederam sua morte. Essa consagração deveu-se não apenas ao conto, mas também a sua poesia, cujos versos falam apenas de mundos interiores, sem qualquer menção ao mundo exterior.


        Quanto ao seu imortal poema O Corvo, este só ficou acabado depois de ter sido modificado ao longo de dez anos; Poe era dotado de extraordinária imaginação, qualidade que se somava a outra, qual seja, a de ter sido intransigente no tocante à qualidade literária de sua obra; daí ter despertado o interesse na sua tradução do inglês para muitos idiomas – para o português, o poema também foi traduzido por Machado de Assis e Fernando Pessoa. Passemos ao poema:




                     O C O R V O



Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
“É alguém”, fiquei a murmurar, “que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais”.


Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiava ver a noite finda, em vão a ler, buscava ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.


A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, de pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais”.


Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta”. Escancarei então a porta:
escuridão, e nada mais.


Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.


Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
mais forte o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais”.


Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.


Ao ver da ave austera a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” – então lhe digo –
“não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
e que se chama: “Nunca mais!”.


Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: “Amigos... sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora”.
E disse o Corvo: “Nunca mais”.


Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de seu cantor; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo
de ‘Nunca, nunca, nunca mais’ ”.


Como ainda ó Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais,
e, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
grasnava sempre: “Nunca mais”.


Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
já não repousa, ah! nunca mais...


O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descesse a esparzir turibulários celestiais.
“Mísero!”, exclamo. “Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus
esquecimentos, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


“Profeta!”, brado. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
e algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo, em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


“Profeta!”, exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Leonora.
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Leonora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.


"Seja isso a nossa despedida!”, ergo-me e grito, alma incendiada.
“Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só nesse ermo agreste! Alça teu voo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”


E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma;
e, presa à sombra, não há de erguer-se, ai! nunca mais!



                           (by Edgar Allan Poe)
REFERÊNCIAS:
POE, Edgar Allan. Antologia de Contos. Trad. Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. de Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Editora Globo, 1999.


  

17 comentários:

  1. Sem palavras!!!
    Já tinha ouvido falar deste poema porém nunca o tinha lido. É de fato soberbo, majestoso, arrepiante comoo corvo aqui descrito que em verdade era sua própria alma enegrecida pelo sofrimento e pela certeza do "nunca mais".
    Abraços
    Angel.

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  2. Que impressionante o que ele prende a nós com seu terror! Que lindo o seu nunca mais, quanto sofrimento, quanto ritmo, quanta beleza tenebrosa.
    O Corvo!
    Maravilha, vou linkar vc no meu blog. TOdos precisam e deveriam ler esta obra prima!
    Obrigada, CON DUARTE

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  3. Anônimo14:22

    Parabéns pelo blog! É ótimo! Chamou minha atenção teu cuidado quanto às referências - também cuido bastante para dar os créditos. Achei lindo o trabalho que ilustra "O Corvo" do Poe: coloquei no meu blog, com os devidos créditos. É interessante notar as pequenas diferenças das traduções: a versão que eu tenho é do Pessoa (1924).
    Abraços

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  4. Bom! devo dizer que foi a procura dessa obra " o Corvo" de Poe, que encontrei o seu blog. Porém junto ao que eu estava procurando ( e achei, e de fato é magnifico, encontrei diversos citações que me deixaram bestificada, pois são de um bom gosto.

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  5. Caro Pedro,

    Adoro Edgar Alan Poe. Os contos: O Gato preto, O enterro prematuro e O Barril do Amontilado, deveriam ser leituras obrigatórias! O enterro prematuro é, talvez, o pior dos pesadelos dos viventes: ser enterrado vivo. Poe, neste conto, revela e faz-nos viver, como nenhum outro escritor seria capaz, o pânico de um enterro em vida! Quem não leu, tem que ler hoje mesmo. Em o Barril Do Amontilado, o pobre Fortunato... bem, não vou nem contar o que ocorreu ao pobre desgraçado, só reproduzir o começo do conto, que sei de cabeça, de tanto que o li. Aí vai: "Suportei o melhor que pude as injúrias do Fortunato, mas quando ele começou a me insultar, jurei vingança!". Imperdível!

    Bem, Pedro. Com relação ao O Corvo, o que me impacta é a forma como ele toca o coração da gente com a certeza do "nunca mais". Nada melhor do que um corvo, numa noite sombria, para fazer as vezes da Grande Vilã, a morte; que leva os nossos, sem aviso prévio. Oh dor das dores! Oh, medo dos medos!

    Acesse o meu blogue e leia um conto chamado "A sua imprevisível chegada". Hoje está na capa. Fala sobre Ela, a Grande Vilã... O escrevi depois que perdi minha mãe, subitamente, há 2 anos...

    Forte abraço, querido! E parabéns pelo belo post sobre este mestre do horror, que foi Poe.

    Cesar Cruz

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  6. Pedro Luso

    Allan Poe, fui um verdadeuro prefeccionista da escrita e sobretudo o iniciador do género policial.

    Daniel

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  7. Excelente este blog!

    Allan Poe, um perfeccionista sim, mas acima de tudo um escritor e poeta de valor!

    Bonita homenagem!!!!

    Beijinhos,
    Ana Martins

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  8. Muitas coisas não se explicam
    Apenas sentimos
    As palavras nem conseguem traduzir
    e pra que palavras , certas horas?
    Vou colocar um post , depois vai la ver
    Um abraço....

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  9. Gostei muito do seu blog. Uma excelente fonte de consulta para quem gosta de ler e escrever. Este poema é magnífico. Parabéns pelo blog!
    Abraços!

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  10. Anônimo15:33

    ÓTIMO POEMA DE POE...UMA BOA IDEIA DE POSTÁ-LO. PARABÉNS

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  14. Hola Pedro. Fantástico este poema de Poe que no había leído aunque el título me sonaba mucho. Es una historia en verso bien intrigante, pero me ha gustado mucho. Gracias por traerlo a tu blog.
    Un abrazo y que disfrutes el fin de semana.

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  15. Es un bello poema. Siempre me ha gustado ese actor. Te mando un beso.

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  16. The Raven, um dos mais conhecidos da Edgar Allen Poe.
    Abraço, boa semana

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  17. Parece que ouço o corvo dizer "nunca mais". Este poema de Edgar Allan Poe é fantástico, reflexivo e tem uma atmosfera quase sobrenatural. Gostei da sua explicação sobre o autor e sobre o poema, que me ajudou a lê-lo com outra abordagem. Obrigada, meu Amigo Pedro.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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Obrigado a todos os amigos leitores.
Pedro