19 de jun. de 2008

JOÃO DO RIO – O Momento Literário

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                        por Pedro Luso de Carvalho
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       A Criar Edições, de propriedade do escritor Roberto Gomes, autor de Exercício de solidão (vide artigo publicado neste espaço sobre Roberto Gomes e sua obra), publicou, no ano de 2006, Momento literário, escrito por João do Rio (1881–1921). Nessa edição, à excelência do texto de João do Rio soma-se o cuidado que foi dispensado pela editora a esse importante livro, com capa e programação visual da Criar Edições, e revisão de Iria Zanoni Gomes.

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Não tenho dúvida de que o leitor será levado por João do Rio a sentir-se ambientado no clima intelectual da época, na qual realizou as trinta e seis entrevistas que compõem o livro O Momento literário. O excelente texto desse jornalista de vanguarda, que foi considerado por muitos o melhor de seu tempo, prende o leitor, da primeira a última página. A primeira dessas entrevistas foi feita com Olavo Bilac, passando por João Ribeiro, Sílvio Romero, Coelho Neto, Clóvis Beviláqua, Osório Duque Estrada, João Luso, Mário Pederneiras, Inglês de Souza, Raimundo Corrêa e dos demais escritores que integram o rol dos trinta e seis entrevistados.
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.        João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, jornalista e escritor, tornou-se célebre com o pseudônimo de João do Rio (adotou também outros: José Antonio José, Joe, etc). O escritor faleceu quando contava com 39 anos, mas foi tempo suficiente para que tivesse produzido uma importante obra literária; isso se deveu, entre outros motivos, o fato de ter se iniciado cedo no jornalismo - com apenas 16 anos -, escrevendo para revistas, passando em seguida a integrar o jornal Cidade do Rio, de José do Patrocínio. Depois, na Gazeta de Notícias, dá início às excelentes entrevistas, com as quais se notabilizaria, expoente que foi desse meio de manifestação literária.
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João do Rio colaborou em vários jornais e revistas, entre eles, O País, A Pátria, Atlântida e Kosmos. De alguns desses veículos foi, além de colaborador, fundador ou diretor. João do Rio, que escrevia para jornais e revistas, logo se tornaria cronista de grande expressão, considerado o criador da crônica moderna. João do Rio também foi contista, romancista, teatrólogo e tradutor. Em 1910, foi eleito para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

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Seguem alguns títulos da obra de João do Rio: As religiões no Rio, Almas encantadas das ruas (1908), Vida vertiginosa (1911), A bela madame Vargas (1912), Os dias passam (1912), Eva - para o teatro (1915), Crônicas e frases de Godofredo de Alencar (1916), A correspondência de uma estação de cura - romance (1918), Cinematógrafo (1919), A mulher e os espelhos - coletânea de contos (1919). O Momento Literário, Dentro da noite, Rosário de ilusões, etc.

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O escritor mineiro Danilo Gomes foi mais um dos tantos escritores que escreveram sobre a figura singular de João do Rio. No seu livro Escritores Brasileiros ao Vivo, dedicou, a ele e a entrevista literária, o seu primeiro capítulo, qual seja: Entrevistas com Escritores Brasileiros Surgiram com João do Rio/Valor Documental/ Agradecimentos. No seu rápido histórico sobre o gênero entrevista, diz Danilo Gomes que “Entrevistas com escritores brasileiros surgiram com João do Rio”.
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.      Mais adiante, Gomes enfatiza: “Entrevistas com escritores representam um tipo específico de documento, como fixação de personalidades, como registro de postulados estéticos professados, de posicionamentos dentro de escolas, correntes e variantes – ou não. São peças do quadro cultural de um país. Conservam um pouco da memória nacional. Da inteligência, da criatividade nacional. Felizmente, dezenas e dezenas de entrevistas dessa natureza deixam de ficar circunscritas à vida efêmera dos jornais e revistas para ganharem maior permanência em livros”.

        Discorrendo ainda sobre a importância da entrevista literária, Danilo Gomes faz referência ao livro de João do Rio, O Momento Literário, e diz que os brasileiros têm tradição nesse particular, graças às entrevistas que o escritor realizou com literatos, em 1905. Também, nesse capítulo, Gomes cita Brito Broca, in A Vida Literária no Brasil – 1900; este, por sua vez, afirma que “João do Rio fez da reportagem um gênero literário, com o que veio a servir simultaneamente ao jornalismo e à literatura”.

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Brito Broca diz que “Jules Huret, que foi quem criou essa manifestação literária ao publicar entrevistas com 64 escritores dos mais notáveis, no L’Écho de Paris, de 3 de março a 5 de julho de 1891, com o título Enquête sur l’evolution littéraire, sobre a situação do naturalismo na França". Brito Broca afirma, ainda: “Foi esse o modelo do Movimento Literário , o inquérito realizado por João do Rio na Gazeta de Notícias, em 1905, e que teve a maior repercussão no país, fazendo com que nos Estados os jornais o aplicassem às respectivas literaturas”..
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Vê-se, pois, que a Criar Edições veio trazer uma apreciável colaboração à literatura ao publicar João do Rio e seu O Momento literário, dando assim a oportunidade aos leitores de tomarem contato com o excelente texto do escritor carioca, e de transportarem-se aos primeiros anos do Século XX, na convivência com um Bilac, um Coelho Neto, um Raimundo Correia. E, quem já o leu, certamente terá a oportunidade de fazer uma nova leitura da obra.




REFERÊNCIAS:
GOMES, Danilo. Escritores Brasileiros ao Vivo, Vol. II. Belo Horizonte: Ed. Comunicação, INL – MEC, 1980.
LINS, Álvaro. BUARQUE DE HOLLANDA, Aurélio. Roteiro Literário de Portugal e do Brasil. Antologia da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, vol. II 1966.
FOTOS: 1. Rua do Ouvidor - espaço de convívio das classes sociais mais favorecidas economicamente no início do século XX.
2. Praia de Copacabana da época áurea de João do Rio.


                                                                                                *  *  *

10 de jun. de 2008

ASTOR PIAZZOLLA & O NOVO TANGO

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por Pedro Luso de Carvalho

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Astor Pantaleón Piazzolla, nasceu em Mar del Plata, Argentina, em 11 de março de 1921 e morreu em 4 de julho de 1992, em Buenos Aires. Astor Piazzolla foi bandeonista, pianista, maestro, arranjador e compositor, e passou para a História como o criador do Novo Tango, este, contudo, sem ter deixado de ser tango; mudou-lhe, seu criador, a forma de expressão. Daí ter se tornado uma referência da música universal, como gênio incontestável, que é, cujas composições são executadas nos dias atuais, como, aliás, vêm ocorrendo há muitos anos, por concertistas de renome, orquestras de câmara e orquestras sinfônicas.
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Num rápido retrospecto da vida de Piazzolla, vemos que o músico passou a viver em Nova York em 1924, para onde seus pais haviam se mudado. Em 1929 passou a estudar bandoneon, e em 1932 compôs o seu primeiro tango. Teve uma breve participação com Gardel, como ator infantil, no seu filme El dia que me quieras. De volta a Mar del Plata, em 1936, passou a atuar em conjuntos locais. Daí mudou-se para Buenos Aires onde, depois de passar por várias orquestras, passou a integrar a famosa orquestra de Aníbal Troilo, aí permanecendo até o ano de 1944, como bandeonista - também foi arranjador e, ocasionalmente, pianista. Em 1946 formou sua própria orquestra, ainda com o tango tradicional.
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Nessa época, quando alguém perguntava a Astor Piazzolla quem era o maior intérprete do tango, ele tinha pronta a sua resposta: “Gardel é o maior de todos”. Sem dúvida, esse admirável músico sabia o que estava afirmando, pois Gardel era, e ainda é o mais importante intérprete do tango - para muitos o seu criador. Lembro-me de uma conversa que tive, há alguns anos, com um dos maestros da Orquestra Sinfônica de Porto alegre, que atualmente vive em Buenos Aires, sua terra natal, sobre Carlos Gardel; eu estava curioso para saber o que esse músico erudito diria sobre o tango, e, especialmente, sobre Gardel. Disse-me o maestro ser um apreciador do tango, e que isso não conflitava com a sua formação de músico erudito, e que, no seu entender, Carlos Gardel é insuperável.
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Nessa ocasião, fiquei pensando no poderia dizer Carlos Gardel sobre Astor Piazzolla, se o tivesse acompanhado depois que este deixou o tango tradicional para abrir-lhe um novo caminho, sem, no entanto abandoná-lo, mas para dar nova roupagem ao tango; e logo pensei numa possível resposta de Gardel: “Piazzolla é o maior de todos”. Nesse caso hipotético certamente Gardel estaria fazendo uma justa apreciação sobre o músico e poeta criador do Novo Tango, que levou o tango tradicional aos seus limites, do ponto de vista estético.
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Voltando ao início da difícil empresa de Piazzolla, vemos que as dificuldades desafiaram a determinação do criador do Novo Tango, mas a resistência à sua música por críticos e músicos, não foi suficientemente forte e decisiva para impedir que seu espírito inovador levasse à frente o seu empreendimento. Piazzolla impôs a sua música, depois de resistir a ação dos conservadores. A sua música não ficou apenas nos limites da Argentina, alçou vôo para o Estados Unidos, onde encontrou boa recepção pelo mundo do jazz, daí passou para a Europa e Japão. No Brasil, também teve, e tem muitos admiradores..
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Passagem interessante na vida de Piazzolla deu-se nos primeiros anos de 1950, quando o músico teve que decidir sobre com qual instrumento ficaria, bandoneón ou piano; e também se passaria a dedicar-se à música clássica, com a qual já tinha intimidade, como músico e compositor. Foi pensando nessa mudança de gênero que Piazzolla mudou-se para a França, quatro anos mais tarde, para freqüentar o Conservatório de Paris, onde conheceu a professora Nadia Boulanger; esta, depois de ter tido um maior contato com o instrumentista e compositor, aconselhou-o a desenvolver sua música tendo por base o tango e o bandoneon. .
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Não demorou muito para que os amantes da música viessem a dar razão a musicóloga. Em 1955, gravou em Paris, com a Orquestra da Ópera de Paris, com Martial Solal ao piano e Piazzolla ao bandoneon, 16 temas, sendo que 14 deles eram de sua autoria: Nonino, Marrón y azul, Chau, Paris, Bandó, Picasso, entre outros. [Nonino foi composta antes de ‘Adiós Nonino; esta famosa e emocionante composição foi escrita por Piazzolla, depois da morte de seu pai, para dele se despedir.]

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Piazzola retornou a Argentina e passou a dirigir a Orquestra de Bandoneon y Cordas, com suas novas composições, com as quais começou a trilhar o seu novo gênero, que passaria a ser conhecido como Novo Tango: Tango del Ángel', e Melancólico Buenos Aires. Nessa época, o repertório de Piazzolla ainda era composto de tangos tradicionais, com suas adaptações, e com tangos atuais na época, de outros músicos: Negraça, de Osvaldo Pugliese, Del bajo fondo de José e Osvaldo Tarantino, Vanguardista, de José Bragato.
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Nessa época, Piazzolla formou o seu Octeto Buenos Aires, formado com músicos do mais alto nível, apresentando ao público um tango que até o momento lhe era desconhecido. Para muitos, esse Octeto constituiu-se no ápice de sua carreira. Com esse octeto gravou apenas dois long-plays, com grandes tangos tradicionais, com suas devidas reinterpretações, tais como: El Marne, Los mareados, Mi refugio e Arrabal.
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Piazzolla retornou a Nova York em 1958, onde passou por muitas dificuldades. De todos os contratempos pelos quais passou, teve como saldo positivo a experiência que fez com jazz-tango, que, parece, não dele não se agradou, possivelmente pelas concessões comerciais que fez com tal experiência. Em 1960 Piazzolla retornou a Buenos Aires e formou o Quinteto Nuevo Tango (bandoneon, piano, violino, guitarra elétrica e contrabaixo); este, que se somou a outros conjuntos que foram fundamentais em sua carreira, foi aclamado por parte do público, e, em especial, pelos universitários.
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Com o passar do tempo, os músicos do ‘Quinteto Nuevo Tango’ foram sendo substituídos. Seu repertório era variado, incluindo tangos de Piazzolla, como Adiós, Nonino, Decarísimo, Calambre, Los poseídos, Introducción al ángel, Muerte del ángel, Revirado, Buenos Aires Hora O e Fracanapa, entre outros. Integrava o Quinteto Nuevo Tango, Héctor de Rosas, com quem Piazzolla viria fazer inesquecíveis versões de Milonga triste e tangos como Cafetín de Buenos Aires", Maquillaje, Nostalgias e Cuesta abajo, entre outros. Em 1963, Piazzolla retornou ao octeto com o ‘Nuevo Octeto’, que embora não tenha se igualado ao Quinteto, deu-lhe experiência para incluir a flauta, a percussão e a voz nos seus futuros conjuntos .
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Nos intensos anos vividos por Piazzolla, têm relevo as experiências de 1965, com o concerto do Quinteto com a Philarmonic Hall of New York, quando o público veio a conhecer a Serie del Diablo, além da Serie del Ángel, e de La mufa. Em Buenos Aires, Piazzolla gravou uma série de composições da melhor qualidade sobre poemas e textos de Jorge Luis Borges, com o cantor Edmundo Rivero e o ator Luis Medina Castro. Nesse mesmo ano gravou Verano porteño; este, o primeiro dos tangos antológicos que passariam a integrar as Cuatro Estaciones. Essa obra foi gravada no Brasil pela Orquestra de Câmara de Blumenau”.
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Piazzolla dá início a um novo empreendimento com o poeta Horacio Ferrer; dessa parceria nasceu a opereta María de Buenos Aires (na qual se destaca Fuga y misterio); depois, criam muitos tangos. Em 1969 lançaram músicas que se tornariam famosas, como Balada para un loco e Chiquilín de Bachín, ambas também gravadas com a cantora Amelita Baltar e com o cantor Roberto Goyeneche. Em 1972, Piazzolla gravou a sua excelente peça, Concierto para quinteto; dada em que formou o Conjunto 9, com quem gravou Música contemporánea de la ciudad de Buenos Aires, que transcendeu a discussão do que seria o tango..
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Mais uma vez Piazzolla deixa a Argentina, agora para uma temporada na Itália, onde lançou Balada para mi muerte, com a contora Milva, Libertango e a comovente Suite troileana, que escreveu em 1975, quando ainda se encontrava abalado pela notícia da morte de Aníbal Troilo. Três anos após, compôs e gravou com orquestra, músicas dedicadas ao campeonato mundial de futebol realizado na Argentina, quando o país vivia os dias sangrentos da ditadura militar, imposta em 1976; a Seleção Argentina sagrou-se campeã mediante manipulação política dos militares. Para muitos, Piazzolla cometeu um erro imperdoável ao homenagear esse campeonato.
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Em 1979, novamente com seu quinteto, apresentou, entre outras peças, Escualo. Nessa época, e nos anos que se seguiram, Piazzolla uniu-se a outros excelentes músicos como George Moustaki (para Moustaki compôs as belíssimas músicas Hacer esta canción e La memoria), Gerry Mulligan e Gary Burton. Dentre outra atuações com o quinteto, destaca-se a inesquecível apresentação em 1987 no Central Park de Nova York.
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Lembro-me quando, acompanhado de minha mulher, estive na apresentação de Piazzolla e seu Sexteto (o último que formou), quando se apresentou no Teatro da Universidade Federal de Porto alegre, em fins dos anos 80. Sem dúvida, um privilégio para nós. Aí ouvimos suas músicas inesquecíveis, as mesmas que ainda ouço pela Rádio da Universidade, por CDs e DVDs, tais como:
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Contrabajeando, Tanguísimo, La calle 92, Oblivion, Años de soledad, Los pájaros perdidos, Lunfardo, Bailongo, Vuelvo al Sur, Adios nonino, Otoño porteño, Balada para un loco Libertango, Melancólico Buenos Aires, Tango del Ángel, Balada para mi muerte, L’Evasion, Tangata de Alba, Milonga del Ángel, No quiero outro, Bíyuya, Lunfardo, Escualo, Chiquilín de Bachín, Meditango, Lãs quatro estaciones porteñas, entre outras.



REFERÊNCIA:
PIAZZOLLA, Astor, por Julio Nudler, Disponível em Todo Tango: Acesso em 10 de jun.2008.

2 de jun. de 2008

[Ensaio] PEDRO LUSO / Não à Franqueza



  
NÃO À FRANQUEZA
[ PEDRO LUSO DE CARVALHO ]



Desde muito cedo as pessoas aprendem a conviver com a franqueza – melhor dizendo, com a suposta franqueza. O primeiro estágio dessa experiência dá-se bem cedo, no seio da família; depois se transfere para a escola, e, mais tarde, para o trabalho. Na família, todas aquelas palavras ofensivas, que foram ditas pelos pais com o propósito de educar – escondendo outros sentimentos –, são as mais significativas; palavras que poderão ecoar bem além da infância, com sérios prejuízos para a formação do caráter de seus filhos.

Na família, os pais fazem a revelação aos seus filhos do que seja a suposta franqueza – na prática –, com a carga ofensiva contida nas palavras que lhes dirigem, para admoestá-los. Embora procurem justificar essa atitude – depois de passada a tempestade –, com palavras como, por exemplo, “fiz isso para o bem de vocês”, os filhos não acreditam no que dizem os pais. Inteligentes e observadoras, as crianças sentem que ouviram críticas agressivas, que as deixaram intimidadas.

As crianças sabem distinguir uma palavra agressiva de um gesto de carinho. De nada adianta tergiversar, as crianças sabem quando uma palavra não transmite sinceridade. O melhor será, pois, os pais agirem com honestidade ao invés de se esconderem atrás de palavras que pensam ser de franqueza, quando são, na realidade, palavras com conteúdo altamente agressivo; nesses casos, quase sempre transmitem aos seus filhos tratamento semelhante ao que receberam de seus genitores, sem se aperceberem disso, o que, aliás, é quase regra.

Enquanto esse círculo vicioso não for cortado pelos pais, que também sofreram esse tipo de tratamento na infância, as novas gerações seguirão confundindo agressividade e mal trato com franqueza [qualidade de quem diz o que pensa]. Por isso, as crianças que aprendem que podem dizer o que pensam, como regra, serão adultos falastrões e inconvenientes. Eles serão críticos ferrenhos dos atos que julgarem errados, na presença da pessoa, alvo da critica, que esteja disposta a ouvi-los.

Um exemplo desse ato de franqueza: um homem e sua mulher são recebidos pelo casal anfitrião. Terminado o jantar o convidado diz não ter gostado nem da comida nem do vinho. Depois o homem deixa a mesa e passa a olhar os quadros na sala de visitas, e, igualmente sem cerimônia, diz, ao casal anfitrião, que nenhuma dessas pinturas é de boa qualidade. O que dizer dessa inominável grosseria?

Isso me fez lembrar uma conferência sobre literatura proferida no salão nobre do Senado, por Ariano Suassuna. A certa altura de sua fala, o mestre diz com a simplicidade própria das pessoas sábias, que um dos defeitos que não consegue suportar nos seus semelhantes é a franqueza. Diz não gostar de quem aponta seus defeitos. Suassuna deixa claro que não se importa que falem mal dele, desde que não o façam na sua presença.

O que pode acontecer de mais grave pela ação de adultos – acostumados que são em dizer o que pensam sobre quem não lhes pediu opinião ou conselho –, é o ataque incontrolável à honra de quem é reconhecidamente honrado. E mal sabem eles que por trás dessa capacidade incontida de usar da suposta franqueza para criticar as pessoas – a que se dão ao direito e com a qual se comprazem –, encontra-se escondido em algum canto da alma um perverso sentimento de inveja, que tentam dissimular.

Encaixa-se no que foi dito acima, ou seja, no sentimento de inveja – suposta franqueza –, dissimulado pelo espírito crítico, um trecho de As Sete Mulheres de Barba Azul, romance de Anatole France:

O talento é o que menos se perdoa. O mundo pouco se importa com a vileza da alma e a deslealdade do coração. Aceita os perversos e os covardes. A própria riqueza desperta pouca inveja porque é sempre considerada imerecida. Até a glória de um homem comum não ofende ninguém. Mas há no talento uma soberba que deve ser expiada com ódios violentos e calúnias pérfidas.


(In: As Sete Mulheres de Barba Azul/Anatole France, 
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983.)



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