– PEDRO LUSO DE CARVALHO
Filha de pai aristocrata e culto, Marguerite Yourcenar pode receber
uma educação especial, tendo sido orientada para o estudo de
línguas clássicas e das civilizações mediterrâneas. Sentia-se
atraída pelo latim, grego e pelo que havia ao seu alcance da
produção artística e literária do mundo clássico. Esse fascínio
mais tarde passaria para as suas obras de ficção, para as quais
aplicava uma técnica que lhe era própria. Os romances de Yourcenar
foram produzidos justamente tendo por base essa cultura clássica que
acumulara quase sempre voltada à História, que era sua seara, da
qual resultou Memória de Adriano, em 1951, no qual imaginara
esse imperador, no início do segundo século da era cristã, entre
outros.
A obra de Marguerite Yourcenar é extensa, ao todo 25 livros, mais
da metade traduzida para o português, a partir de 1980. Os temas de
seus livros passam pela história, pela arte, pela religião e pelo
erotismo. As duas dimensões praticamente inseparáveis dos temas
místicos que aborda, e que procura fazer sobressair-se na sua obra,
são o profano e o sagrado. A título de exemplo, mencionamos a A
obra em negro, Contos orientais, Fogos, Alexis,
O tempo, esse grande escultor, Recordações de família
e Arquivos do norte.
Em todos os seus livros pode-se sentir que a escritora maneja a
língua com equilíbrio e sobriedade, o que lhe valeu o “estigma de
clássica”, como declarou em 1984, diz Ecila de Azeredo, professora
de Literatura Francesa da UFRJ; e mais:
Embora hoje seja insólito o ‘escrever bem’, Yourcenar cultuou
com afinco a elegância da língua em sua prosa marmórea, articulada
com clareza e sem suturas, apesar de concentradamente burilada, como
requer o efeito final do texto “clássico” e é isso justamente
que causa uma certa sensação de estranheza em mais de um leitor.
O romance Alexis ou O tratado do vão combate foi a primeira
obra de ficção de Marguerite Yourcenar, editado em 1929, em Paris,
pela editora Au Sans Pareil. Em entrevista que a escritora concedeu a
Patrick de Rosbo, disse-lhe em resposta a uma pergunta sobre esse
livro:
Tive a sorte de escrever de uma só vez Alexis, em 1928,
publicá-lo no ano seguinte sem modificações, representando quase
exatamente o que eu queria e podia dizer durante aqueles anos.
Rosbo pergunta- lhe quais as obras que foram reescritas e quais as
que não foram; a escritora respondeu-lhe:
Falei de Alexis escrito de um só jato. Golpe de
misericórdia também foi escrito em algumas semanas, durante o
outono de 1938. Era a época das famosas entrevistas de Munique: a
guerra estava novamente bem próxima, e tenho certeza que as
angústias do momento têm alguma coisa a ver com a tensão interior
da narrativa, voltada como é para um episódio de guerra situada
cerca de vinte anos mais cedo. Eu estava em Sorrento: morava no Hotel
Tramontano no quarto em que Ibsen escreveu Espectros. E
acrescenta: Ibsen foi um dos grandes escritores com quem mais
aprendi.
Respondendo ainda essa pergunta de Rosbo, prossegue Yourcenar:
Mas voltemos a pergunta da reescritura. Denário do sonho, diferente
nisso de Golpe de misericórdia, foi várias vezes reescrito. Em sua
primeira forma, data de 1933, o próprio ano em que se situava a
aventura. Essa primeira versão, aliás muito desajeitada, teve em
1934 a honra de exasperar alguns críticos, simplesmente por causa da
audácia que consiste em apresentar fatos mais ou menos como são. Um
crítico de extrema direita declarou num grande jornal da época que
ele não duvidava que aquele livrinho fosse em breve “despejado”
junto com “os últimos restos da ideia de liberdade”. Foi mesmo
um pouco essa espécie de raiva desse primeiro esboço errado que
mais tarde me levou a reescrever o livro.
Mais adiante Patrick de Rosbo passa a questionar Yourcenar sobre os
seus romances que são ambientados na História, que parecia ser o
que mais lhe agradava. Responde à pergunta
de Rosbo relacionada com a ideia que a escritora tem da continuidade
da História:
Denário do sonho situação em 1933, na Itália mussoliana, período
que para nós já é histórico, mas era um romance contemporâneo na
época em que eu o estava escrevendo. Golpe de misericórdia, que
evoca um episódio das guerras bálticas de 1920, foi escrito em
1939: já era, se quiser, um “romance histórico”, e situa-se
quase na pré-história para muitos jovens escritores de hoje.
Rosbo faz esta pergunta à escritora: “Na medida em que se trata de
um passado longínquo, o de Memórias de Adriano ou de A
obra em negro, por exemplo, será que não nos encontramos então
diante de personalidades ou de visões do mundo muito diferente das
nossas?” Segue a resposta de Yourcenar:
Sem dúvida, e é isso que constitui para a maior parte das pessoas a
fronteira, na verdade muito flutuante, entre a História e a “vida
atual”. Mas é também o que torna apaixonante a História. Nesse
sentido, pode-se dizer que a História é uma escola de liberdade. É
o que não foi suficientemente visto por escritores como Gide e
Valéry, que não gostavam da História. Talvez se deva dizer para
desculpá-los que eles pensavam na História de uma maneira, de certo
modo, escolar, e se revoltavam contra essa apresentação tradicional
dos acontecimentos que eram forçados a aceitar.
Ainda sobre o romance histórico, Rosbo fala a escritora sobre “a
armadilha do pitoresco, do mesmo modo como o passado, ou a distância,
podem nos esconder a verdade muitas vezes decepcionante de seus
cenários, de seu quadro. É assim em Zênon, em A obra em
negro (livro de ficção histórica)”. Diz-lhe, então,
Yourcenar:
“Já fizemos alusão a esse engano ingênuo ao falar dos que
acreditam que o passado é um asilo. Também não é um Eldorado”.
Para a escritora, raramente acontece que grandes pintores e grandes
poetas do passado conseguiram contrariar a História, “um meio
atemporal, limpo de tudo o que a vida tem de mesquinho e de
imperfeito, propício à emoção pura e ao canto puro. Isso não é
verdadeiro quanto a Shakespeare, que nunca perde de vista a
‘atualidade’ da História e a terrível complexidade da vida,
presente ou passada. Mas é verdadeiro quanto a Racine em Bérénice;
é verdadeiro quanto a Poussin, em Les funérailles de Phocion.
E sabemos que essa história assim é falsa”. A escritora faz essa
afirmação sobre essas obras de Racine e de Poussin.
Depois Rosbo pergunta à sua entrevistada o que distingue, para ela,
o romancista histórico do historiador, então Yourcenar responde
dizendo que as posições de um e outro parecem quase idênticas, à
primeira vista, mas que há grande diferença entre eles, no que se
relacionado ao método, dando realce que “as regras do jogo do
historiador são inteiramente outros que os do romancista, mesmo do
mais engajado na história”. Em seguida, procura mostrar-lhe o que
os diferencia:
O historiador tem diante de si todo um arsenal de fatos e de
hipóteses que ele tem de nos apresentar com exatidão, com lucidez,
e para os quais pode até, às vezes, nos deixar escolher a
explicação mais aceitável. Tem de procurar saber tudo sobre o
personagem de que fala, resistir a seus preconceitos pessoais, tentar
honestamente ‘compreender’.
Explica, que o historiador não é obrigado a entrar dentro do homem
em questão, para recriá-lo; e, vai mais longe ao dizer que ele,
historiador, está proibido a fazer essa recriação, por não poder
afastar-se dos fatos e de hipóteses. “Além do mais – diz a
escritora – o historiador tem perfeitamente direito de dar, por
exemplo, a imagem da batalha de Waterloo colocando-se nas
perspectivas de 1971 – época em que concedeu essa entrevista -, às
vezes é seu dever e seu mérito fazê-lo”.
Yourcenar diz que outra é a situação do romancista:
O romancista, ao contrário, como por exemplo fez Stendhal, nos faz
mergulhar num 18 de junho de 1815 – aqui ela refere-se a batalha de
Waterloo – em que não se sabia ainda quais seriam os resultados da
batalha, nem mesmo se aquela série de combates informes iria algum
dia se chamar de História a batalha de Waterloo. Por isso
faço tanta questão de tentar recolocar os personagens na cronologia
que foi a deles – como Adriano na Palestina pelo ano 884 da era
romana e não no ano 136 da era cristã, que ele ainda não sabia que
havia sido começado, para devolvê-lo a seu tempo próprio em vez de
impor-lhe nosso tempo.
Prossegue a escritora:
No que se refere a Memórias de Adriano, o estilo se aproxima
do da História, pelo fato de que Adriano, ao considerar sua vida à
distância de seu leito de morte, é de certo modo seu próprio
historiador, seu próprio Plutarco. O próprio tom se modela sobre o
dos historiadores, dos ensaístas latinos da época. Na verdade,
estamos, entretanto, no mundo da reconstrução poética ou da
psicologia de romance, no sentido de que é sua própria história
que Adriano evoca sua própria obra que ele comenta, e que, por muito
lúcido que se considere, ele está preso como todos nós nos jogos
de espelho que logo surgem, por tratar de si mesmo.
Prossegue Yourcenar:
A obra em negro, também recheada de História, o tom é ao
contrário inteiramente o da crônica romanesca. Em primeiro lugar,
porque intervém a conversa, e o entrecruzamento das vozes toma o
lugar do solo de Adriano (eu não me atreveria - diz a
escritora – a ‘imaginar’ uma conversa do século II: não
sabemos suficientemente como aquelas pessoas falavam umas com as
outras), depois porque Zênon vai vivendo cada dia sem nunca
poder retrospectivamente se prever ou se construir. Um único
capítulo, O abismo lhe dá oportunidade para isso, que ele
não aproveita. E de novo, aqui, a psicologia do personagem:
Adriano ‘sabe que é’ uma figura histórica, e essa tranquila
certeza determina seu olhar sobre toda a sua vida; não há Zênon
algum para Zênon.
Para ficarmos apenas com um pouco do que preleciona Yourcenar sobre o
romance histórico e a diferença entre o romancista histórico do
historiador, vejamos o que responde a esta pergunta; Patrick de Rosbo
quer saber se há “uma exigência para o romancista histórico
interiorizar seus personagens”. E mais: se “essa tarefa não é
em algum caso a do historiador, a romancista histórico volta às
fontes do que foi a vida, ao que a senhora chama de ‘essa fluidez
(...)”, ao que a escritora responde: “É verdade. Eles foram - os
romancistas históricos - os primeiros historiadores poetas do mundo
moderno que podemos surpreender trabalhando, esforçando-se para
fazer o público sentir o que um erudito inglês de hoje chama o
choque do passado subitamente revelado”.
Marguerite Yourcenar, pseudônimo usado Marguerite Cleenewerck de
Crayencour, nasceu em 8 de junho de 1903, em Bruxelas e cresceu na
França. (Yourcenar foi a primeira mulher eleita para a Academia
Francesa. Conforme disse, aceitou essa vaga apenas ‘por educação’.)
Depois residiu na Itália, Suíça, Grécia e, por fim, nos Estados
Unidos, em Mount Desert Island, no Maine, por cerca de 50 anos, onde
se isolou com sua amiga Grace Frick , e onde faleceu, em 17 de
dezembro de 1987.
REFERÊNCIAS:
AZEREDO, Ecila de. O
ser e o tempo: M. Yourcenar.
Rio de Janeiro: Jornal Leia. 1988.
ROSBO, Patrick. Entrevistas
com Marguerite Yourcenar.
Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1987.
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Pedro