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23 de mar. de 2011

JOÃO CABRAL DE MELO NETO – Espanha e Touradas

João Cabral de Melo Neto


         
  
                     por  Pedro Luso de Carvalho


     
       Félix de Athayde (1932-1995), jornalista e poeta pernambucano – trabalhou no Correio da Manhã, O País, O Estado de S. Paulo, O Pasquim, O Globo e no Jornal do Brasil - é o autor de Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Athayde diz, no prefácio da obra, que “Este é um livro de amizade e serventia ao mesmo tempo. Da amizade que me une a João Cabral – que conheci aí por 1953, no Recife -, da serventia que suas idéias fixas possam ter para quem escreve”.

        Esse excelente livro de Félix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de melo Neto está dividido em duas partes: “Uma educação pela pedra” (as opiniões do poeta sobre muitas coisas, sempre relacionadas com a literatura) e “Outra educação pedra” (a obra comentada pelo próprio poeta, e com suas opiniões sobre autores, e o que João Cabral comenta sobre seus próprios livros e sobre ele mesmo).

        Félix de Athayde termina o seu prefácio dizendo: “Finalmente, reconheço que este é mais um livro de João Cabral do que meu. Da minha parte, meu preito ao amigo, conterrâneo e grande escritor – um dos mais perfeitos intelectuais que o Brasil produziu. E Pernambuco”. 

        Escolhi alguns trechos do livro de Félix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, nos quais o poeta fala da Espanha, em especial de Andaluzia, que o fascinava [cuja capital é Sevilha], e de touradas e toureiros. No verbete ANDALUZIA (é assim, em verbetes, que o livro foi organizado), transcrevo estes trechos:

        “(...) eu sou fascinado por toda a Andaluzia. Mesmo cidades como Córdoba, sendo o contrário de Sevilha, têm a mesma força andaluza (...) É engraçado que, das cidades da Andaluzia, Granada é aquela que menos me interessa. Acho que Granada é uma cidade cenográfica, como a Bahia”.  

        Ainda nesse verbete, prossegue João Cabral: “É impossível separar as duas coisas [flamenco e Andaluzia]. A própria cidade de Sevilha é flamenca. Conheci a Andaluzia relativamente tarde, na minha carreira diplomática. Antes de servir em Sevilha, estive em Barcelona e em Londres”.  

        O poeta diz que em alguns lugares de Barcelona podia encontrar quadros flamencos: “Os catalães não gostam de flamenco, mas eu era um freqüentador inveterado desses lugares. E quando fui para Sevilha senti-me um peixe na água...”.

              (In Entrevista a Maria Leonor Nunes. JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, nº 448, 05/10 fev. 991).

        Podemos ler, ainda, em Idéias fixas, de Athayde, no verbete ESCREVER, mais sobre o que João Cabral sentia pela terra de Cervantes: “A Espanha foi o primeiro contato que tive com uma civilização estrangeira. (...) E aí tudo me fascinou, desde a corrida de touros até ao flamenco...” 

        João Cabral explica um pouco mais sobre a razão desse fascínio: “(...) Foi só na Espanha que tive o primeiro contato com os clássicos, desde o Poema do Cid a Gonzalo de Berceo e ao Século de Ouro, tudo me impressionou fortemente. E de certo modo me influenciou. Eu não conheço tão bem Gil Vicente, por exemplo, como Berceo, que estudei verdadeiramente anos a fio”.

       Sobre essa influência da Espanha, o poeta pernambucano fala, ainda: “Eu recebi mais da poesia espanhola. O que esse pessoal me mostrou, e me impressionou muito, é que não vale a pena escrever para o povo sem usar a forma que ele usa. É por isso que eu utilizo a forma narrativa.”

        (In Entrevista a José Carlos de Vasconcelos, Diário de Lisboa, suplemento semanal Vida Literária e Artística, Lisboa, 16 jun. 1966). 

        Já no verbete MANOLETE, do livro Idéias fixas, de Félix de Athayde, João Cabral fala de toureiros e das corridas de touros: “É, realmente, a corrida de touros é uma coisa extraordinária. Eu cheguei em barcelona em 1947, eu vi Manolete tourear duas vezes. Ele morreu em julho de 1947. Nesse ano, ele ainda toureou em Barcelona duas vezes e ele morreu em julho (...) e ele ainda ia tourear em Barcelona naquele ano e nós tínhamos um amigo comum que me ia apresentar a ele”.

        Na entrevista, João Cabral tinha mais ainda o que falar sobre Manolete, um dos maiores toureadores da Espanha: “Eu não conheci Manolete pessoalmente. Essa pessoa dizia que foi uma pena eu não o ter conhecido porque era um sujeito com quem eu ia me entender muito bem. Esse amigo me dizia que eu tinha deixado de conhecer uma pessoa de quem seria, certamente, um grande amigo, por causa do temperamento dele (...) retraído, calado”.

        Na sequência dessa entrevista, João Cabral faz ainda outras referências ao célebre toureiro: “Era homem de origem humilde, o pai dele foi um toureiro, de forma que Manolete começou carregando pedra numa estrada. Agora, ele era uma curiosidade intelectual enorme. (...) Ele era um homem extraordinário. (...) Conheci alguns toureiros: Manolo Gonzáles, Julio Aparicio”.

          (In Segunda de uma série de três entrevistas a Júlio César Lobo, A Tarde, Salvador, 27 out. 1987.)

        Quanto ao livro de Félix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, ficamos por aqui, para passarmos para outra obra importante, qual seja, Duas Águas (Poemas Reunidos), de João Cabral de Melo Neto , Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 45-46. 

Dessa obra, Duas Águas (Poemas Reunidos), escolhemos um poema de João Cabral de Melo Neto, que se encaixa perfeitamente no que ficamos conhecendo sobre a sua paixão pela Espanha e pelas corridas de touros, qual seja, “Alguns Toureiros”, poema, escrito em 1955, e que foi dedicado a Antonio Houwaiss, membro da Academia Brasileira de Letras:



ALGUNS TOUREIROS



Eu vi Manolo González
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparicio,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manoel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca da caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fimbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manoel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.



                  (por João Cabral de Melo Neto)




REFERÊNCIAS:
ATHAYDE, Félix de. Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. 4ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: FBN; Mogi das Cruzes, SP: Universidade de Mogi das Cruzes, 1998, p. 11-13, 17, 31, 135.
DE MELO NETO, João Cabral. Duas águas'. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 45-46.




3 de mar. de 2011

[Conto] PEDRO LUSO – O Oficial de Justiça




[ESPAÇO DO CONTO]

O OFICIAL DE JUSTIÇA
 – PEDRO LUSO DE CARVALHO
  
O circunspeto Romualdo foi um bom oficial de justiça. Trabalhou por muitos anos sem um único deslize. Pessoa íntegra, no forum conquistou o respeito dos juízes e dos servidores da Justiça. Certo dia saiu de casa para fazer uma citação a três quadras dali. Quando chegou, procurou pela campainha. Acionou-a uma única vez. A mulher que o atendeu era magra, cabelos em desalinho, e devia ter menos de trinta anos.
– Procuro pela senhora Mafalda.
– Pois não, senhor! Sou eu mesma.
O seu vestido vermelho, com ousado decote, fez com que Romualdo desviasse o olhar no momento em que lhe entregou o mandado de citação. Depois apanhou a contrafé, por ela assinada, e retirou-se, fazendo-lhe um tímido aceno com a cabeça,
 Passados dois dias, Romualdo recebeu um bilhete da mulher de vestido vermelho, convidando-o para um aperitivo em sua casa. Tornou a ler o bilhete para certificar-se se era a mesma mulher que citara dias atrás. Não havia dúvida, a letra era a mesma.
Uma semana depois, Romualdo recebeu um telefonema de Mafalda, que lhe disse, com voz rouca: “Ainda estou aguardando a sua resposta”. E renovou o seu convite.
– Eu sou um homem casado...
– Venha no final da tarde – disse, com firmeza.
Romualdo foi ao encontro de Mafalda, depois de concluir a última citação daquele dia. Os encontros nos finais de tarde tornaram-se rotineiros. Aos domingos, saia a passeio com a esposa e a filha.
Passados pouco mais de dois anos, Romualdo começava a sentir o peso da culpa. Não deixava de pensar na boa qualidade de vida que levava, antes de conhecer Mafalda.
Decidido a romper com o relacionamento, pediu à amante que o esperasse, no final da tarde. Quando chegou, foi direto ao assunto:
– Vamos ter que terminar com este caso – disse, sem olhar nos seus olhos.
Como não ouviu dela nenhuma resposta, saiu às pressas. Depois de ter permanecido sentada por algum tempo, o olhar fixo na porta, por onde Romualdo saiu, falou com voz embargada, no vazio da sala: “Se ele pensa que vai me abandonar engana-se”.  
Mafalda passou a telefonar todas as noites para a casa de Romualdo, por várias semanas. A esposa preocupava-se com esses telefonemas, e com o estado de prostração do marido, que no momento separava alguns mandados de citação, para o seu dia de trabalho.
– Um menino me entregou isto – disse a esposa, preocupada.
Romualdo esperou que ela saísse da sala para abrir o envelope. Reconheceu a letra de Mafalda. Um sentimento de desgraça deixou-o abatido. No bilhete, a amante dizia: “Vou contar tudo o que existiu entre nós à sua mulher”.
O oficial de justiça voltou a sentar-se, extenuado. Afastou os documentos que estavam sobre a mesa, e aí deixou o bilhete, com os rabiscos ameaçadores de Mafalda.
De repente, tomado de fúria, Romualdo saiu em direção à casa de Mafalda. Enquanto caminhava, segurava o revólver no bolso do paletó até deparar-se com a amante, momento em que sentiu a mão enrijecida e os contínuos repuxos da arma.
O tempo parecia ter parado para o oficial de justiça. Refazendo-se, Romualdo esfregou os olhos, como se estivesse acordando, e logo ouviu o seco estalido das algemas, apertando-lhe os punhos.


*  *  *