[ PEDRO LUSO DE
CARVALHO ]
DALTON
TREVISAN foi um dos escritores brasileiros que, no início dos anos 60, passaram
a adotar o conto para contar suas histórias; nessa época, que marcou uma
revolução na produção desse gênero literário, também se destacaram: Rubem
Fonseca, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.
Na
introdução de Os cem melhores contos
brasileiros do século, o crítico literário Italo Moriconi disse que foi há
cerca de cinco décadas que o conto se formatou em uma narrativa de no máximo 20
a 25 páginas, deixando para trás as histórias mais longas e caudalosas, que são
classificadas como novelas.
No
moderno conto brasileiro destacam-se Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, o que
pode ser comprovado pela crítica literária e também pelos nomes das editoras
que os publicam, pelo numero de suas reedições, em especial pela aceitação de
ambos pelos leitores.

Segue A faca no coração, conto de Dalton Trevisan (in Trevisan, Dalton. A faca
no coração. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1979, p. 105-108):
A FACA NO CORAÇÃO
[ DALTON TREVISAN ]
– Você
raspou o bigode, João? Ficou mais moço.
– Na
mesma hora em que ela me deixou. O amor é uma faca no coração. Cada dia se
enterra mais fundo, que não deixe de sangrar.
– Esse
óculo rachado. Não pode enxergar direito.
– Depois
a gente acostuma, não atrapalha tanto.
– Maria,
ela não merece você. É bom demais. E os filhos?
– A mais
velha me odeia. Dizer que me chamava Paizinho.
– No
começo eles tomam o partido da mãe.
– Ao
encontrá-la na rua, me virou o rosto: Você é uma filha ingrata. Nada de ingrata. Nem considero o senhor meu
pai. Então a culpada foi sua mãe... Sabe o que ela fez? Quis me avançar com
a unha afiada.
– A
outra filhinha?
– Também
do lado da mãe.
– E o
filho?
– Esse é
o maior inimigo.
– Você,
João, uma infância tão feliz. Agora sofrendo esse horror. Dona Cotinha teve a
felicidade de não ver.
– Se
ela está vendo... Tudo!
– Vendo
o quê?
– É
espírito forte. Tudo ela vê. Fala comigo em sonho. Sabe o que repete?
– ...
– Meu filho, sinto uma pena de você!
– Ó
Maria, mal de cada dia.
– Minha
cama é só mordida de formiguinha ruiva. Usei tudo que é veneno. Até lavei o
soalho. Mas não adiantou.
– É a
famosa insônia de viúvo.
– Três
da manhã, lá vem o negro desdentado, entra no quarto, deixa uma flor na minha
testa.
– E
quando você acorda, a flor está ali?
– Como é
que adivinhou? Flor é do céu, não é? Quem manda é a velha: Vá cuidar do meu menino, tão sozinho.
– Deve
arrumar uma companheira.
– Quem é
que vai me querer?
– Quanta
mulher, João. Uma viúva, uma desquitada infeliz, tanta professora bonitinha.
– Cada dia – são palavras da Maria – é mais difícil gostar de você.
– Mulher
é que não falta.
– Tenho
uma em vista. Viúva de trinta anos. Maria praguejou que sozinho não consigo
outra.
– Deve
mostrar para ela. Pode até escolher.
– Como é que você dobrou a Maria, assim
furiosa? – perguntou a pobre velha, antes de morrer. Não dobrei a Maria, eu
disse, dobrei os joelhos.
– Mudar
a lente rachada não custa. Em vez dessa gravata fúnebre uma de bolinha azul.
–
Nunca tomei um copo d’água sem dar a
metade para ela, que no fim me fugiu. Na cama o cobertor era todo de Maria. Não
tinha um fio e uma agulha para este botão?
– Bem
sei que fazia pose para você. Logo ela!
– É
refinada feiticeira. Coração comido de bichos, ela tem um buraco no peito. Sabe
o que, no dia em que me abandonou?
– ...
– Só de
traidora degolou o casal de garnisés...
– Nem
tremeu a mão de unha dourada.
– ...
estrangulou o canário no arame da gaiola...
– Não me
diga, João!
– ... e
furou o olho do peixinho vermelho.
–
Esqueça a ingrata nos braços de outra.
– Não é
feia a viúva. Trinta anos mais moça, apetitosa. Só eu não mereço?
– Assim
é que se fala, João.
– Não
posso ter dó de mim, daí estou perdido. Acho que me engracei pela viuvinha. O
amor é uma corruíra no jardim – de repente ela canta e muda toda a paisagem.
* * *