6 de mai. de 2023

[Conto] CARLOS CARVALHO - De corpo presente

   


    - Pedro Luso de Carvalho
              

Carlos Carvalho (Carlos José Gomes de Carvalho) nasceu em Porto Alegre, RS, no ano de 1939, onde faleceu, no ano de 1985, aos 46 anos. Nas décadas de 1970 e 1980, destacou-se na dramaturgia. Versátil, não se limitou a escrever para o teatro, também foi poeta e contista.

Ao Teatro deu sua contribuição não apenas com as peças que escreveu. Carlos Carvalho também foi ator e diretor. Por isso, foi homenageado pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre, que deu o seu nome a uma das salas de espetáculos, na Casa de Cultura Mario Quintana – “Teatro Carlos Carvalho”.

 Em 1971, conquistou o 1º prêmio do Salão de Porto Alegre, com o objeto poema Amortecedor; em 1974, foi o ganhador do 2º prêmio no Concurso Nacional de Contos do Estado do Paraná – Fundepar. Livro publicado: Calendário do medo, conto, 1975. Participou das antologias Roda de fogo, 1970, e Os melhores contos brasileiros de 1974 – em 1975.        
              
O conto que segue, De corpo presente, integra o livro de Carlos Carvalho, Calendário do medo, 3ª ed. Porto Alegre, Editora Movimento, 1975, p.11-12:




DE CORPO PRESENTE

         ( Carlos Carvalho )



Foi quando se apercebeu de que vivia nas trevas não sabia desde quando. Com a descoberta, a compreensão exata e desagradável da ausência.

No desejo intenso de se tornar presente, tratou de utilizar-se: lançou um membro, arremeteu outro, em marradas sucessivas. À força de vibrar, tentou romper os muros que o rodeavam, mas a desconexão e a noite impediam-lhe o movimento. A sólida construção a tudo resistia. Exausto, abandonou-se ao tépido torpor que o massageava. E adormeceu por séculos e séculos.

Foi arrancado do sono pela convulsão noturna. As paredes infladas tremiam em espasmos contínuos; um mar negro e viscoso elevou-se do abismo; ondas fermentaram ao seu redor, engoliram-no e trouxeram-no de novo quando já se julgava perdido; corpos estranhos grudaram-se ao seu, aumentando a noção de limites. Debateu-se. Fugindo às barreiras que o aprisionavam e que agora ruíam, rastejou, escapando, lenta e exaustivamente dos tentáculos e escamas que insistiam em retê-lo na escuridão. Lutou e perdeu a consciência.

Acordou com a luz doendo nos olhos. O corpo pesava numa superfície fria e drapeada. Demorou a acostumar-se com a luz. Mas a alegria de se sentir presente, de ocupar o lugar que sempre lhe estivera reservado, deu-lhe forças e obstinou-o a educar-se.

Luz primeiro, conforme o constatado. Depois, manchas indecisas, flutuantes, que ao poucos se fixavam e tomavam formas onde ele se refletia e se via futuro. E sons que batiam dolorosamente nos tímpanos, tentando acomodar-se, e que eram rechaçados, estrangeiros. Pacientemente aprendeu a selecioná-los, a catalogá-los, a entender o significado de cada um.

E quando distinguiu claramente as formas, quando percebeu o sentido dos sons, foi tomado por uma grande saudade do lugar antigo. Um pânico maior abateu-se. Gritou.

Logo acorreram mãos que tentaram acalmá-lo e contra as quais se rebelou. Através das mãos que dele se apossavam, que dispunham dele, evidenciando a propriedade, compreendeu o real sentido de um mundo grosseiro e pesado que ameaçava esmagá-lo. Gritou mais.

Preocupados os pais, o médico os afastou do berçário, dizendo tratar-se de uma simples cólica intestinal.

Inútil qualquer esforço, bebeu, resignado, o chá de erva-doce que o forçavam a engolir. E gostou.



          *  *  *
  

8 comentários:

  1. Querido dr Pedro, conhecia Carlos Carvalho mais pelo teatro, mesmo assim, pouco, mas fiquei encantado com este conto (é a minha cara), vou querer ler este livro...um literatura densa, angustiante, sombria, mas de um colorido nas palavras, um emaranhado que precisa ser desfeito, e ele entrega no final do conto, como se o cordão umbilical provocasse o emaranhado, sendo desenrolado e lançado uma luz sobre a sombra, então nos encontramos, e respiramos aliviados. Ótima leitura. Adorei.
    ps. Meu carinho meu resperito meu abraço

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    1. Obrigado, caro Jair, pela sua prestigiosa visita e pelo seu inteligente comentário.
      Um grande abraço.

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  2. Estou a conhecer aqui.
    E saboreei o conto com todo o gosto.
    Abraço, boa semana

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    1. Obrigado amigo Pedro pela sua visita e pelo seu comentário,
      muito importante para mim.
      Grande abraço, saúde e paz!

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  3. Um conto muito diferente do que habitualmente lemos.
    E excelente, gostei de ler.
    Obrigado pela partilha.
    Boa semana.
    Abraço.

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    1. Olá, amigo Jaime, uma satisfação receber a visita e comentário
      do nobre poeta. Sua visita deu brilho a esta página.
      Grande abraço, saúde e paz.

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  4. Que conto maravilhoso, surpreendente. Amei a criatividade do autor. Grata pela bela e interessante partilha. Abços. Boa tarde

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    1. Olá, Norma, uma grande satisfação ver você também aqui no blog Panorama. Agradeço a sus visita e comentário.
      Uma boa sexta feira.
      Grande abraço.

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Obrigado a todos os amigos leitores.
Pedro